TERRA PLANA X GLOBO: Choque de cosmovisões

Dos gregos herdamos o jeito de pensar, e dos hebreus, a fé. Comparar essas visões de mundo pode ajudar você a ver a vida com outros olhos

Como você enxerga a realidade ao seu redor? Qual é a sua cosmovisão? Antes de torcer o nariz e virar a página, achando que essa matéria não tem nada a ver com você ou que o assunto é muito “filosófico”, espere aí!

Suponhamos que você fosse um peixe, que passou a vida inteira dentro d’água. Um belo dia, a maré baixa e você vai parar na praia. Antes que a próxima onda o leve de volta pra dentro do mar, você contempla o céu, as montanhas e as pessoas ao redor. Assustado e de volta ao seu habitat, você acabou de fazer a maior descoberta de sua vida: o mundo não é só água!

Todos nós interpretamos a realidade de acordo com um conjunto de valores, crenças e ideias que acumulamos ao longo da vida. Isso se chama “cosmovisão”. Mas nossa maneira de ver o mundo não é a única – e talvez não seja a melhor (“o mundo não é só água”).

Na Antiguidade, por exemplo, duas cosmovisões disputavam lugar. Grécia e Israel tinham modos bem distintos de pensar. Os gregos deixaram uma herança muito rica para o Ocidente, nas artes, na ciência e na cultura. Sem eles, não seríamos o que somos hoje.

No entanto, do ponto de vista religioso, a influência grega trouxe mais males do que bem. Se hoje temos tanta dificuldade para entender a Bíblia, em grande parte, isso é devido à nossa mente “helenizada” (lembre-se: a Bíblia foi escrita por hebreus). Daí a importância de entender mais a fundo a mente hebraica.

Vale lembrar também que nem todos os gregos e hebreus pensavam de maneira igual. As diferenças a seguir representam cada cultura de modo geral, e compará-las pode ajudar você a entender a Bíblia, redefinir o amor e experimentar a fé de um jeito novo.

 

Concreto x abstrato

Lembra quando, no primário, a professora explicava a diferença entre esses dois conceitos? O que dá para pegar, tocar, ver e sentir é concreto (livro, casa, cadeira…). O que não dá para ver, nem tocar está no campo do abstrato (alegria, vontade, justiça…).

No idioma hebraico antigo (língua do Antigo Testamento da Bíblia), ao contrário do grego, as ideias eram muito mais concretas do que abstratas. Até conceitos abstratos, como os sentimentos, costumavam ser associados a algo concreto.

Em hebraico, a palavra “ira” ou “raiva”, por exemplo, é ’af (Êx 4:14), a mesma que é usada para “nariz” ou “narinas” (Jó 40:24). Mas o que tem a ver nariz com raiva? É simples: Geralmente, quem fica com muita raiva respira de modo acelerado, e as narinas se dilatam. Interessante, não?

Outro exemplo é a palavra “fé”, ’emunah (Hc 2:4), que em vez significar apenas crença ou aceitação mental – como no grego –, expressa também qualidades como firmeza, fidelidade e estabilidade. Ter fé, na visão hebraica, é se firmar em Deus, como uma estaca fincada no chão (Is 22:23; “firme” vem do verbo ’aman, a mesma raiz de ’emunah). Portanto, crer é se apegar a Ele e ser fiel.

Dinamismo x ócio

Na Grécia antiga, dava-se mais valor à falta de ocupação do que ao trabalho, principalmente entre os atenienses. Não ter que trabalhar e se dedicar apenas à contemplação e ao mundo das ideias era considerada a mais nobre das “atividades”. Já os hebreus eram um povo extremamente dinâmico e seu idioma refletia isso.

No português, como em outras línguas, o nome ou sujeito vem em primeiro lugar na frase, e o verbo, geralmente, é colocado logo em seguida. Exemplo: Antônio obedeceua seu pai. Em hebraico, a ordem das palavras ficaria assim: Obedeceu Antônio a seu pai. Isso mostra que, para os hebreus, as ações eram mais importantes.

Até substantivos que, para nós, não implicam necessariamente uma ação, para eles envolviam algum movimento. A palavra “presente” (ou “bênção”), berakah em hebraico (Gn 33:11), por exemplo, vem da raiz brk (“ajoelhar”), e significa “aquilo que se dá com o joelho dobrado”, fazendo referência ao costume de inclinar o corpo ao presentear alguém. A palavra “joelho”, berek (Is 45:23), por sua vez, significa “a parte do corpo que se dobra”.

O conceito hebraico de comunhão – “andar com Deus” (Gn 6:9) – também envolve movimento e significa manter um relacionamento constante com Ele. E a palavra “júbilo”, rwa‘ ou ranan (Sl 100:1149:5), significa “dar um grito retumbante de alegria”.

Para os hebreus, havia uma íntima relação entre aquilo que se fala e o que se faz. Entendia-se que a palavra de um homem deve corresponder às suas ações. Aliás, “palavra”, em hebraico, significa também “coisa” ou “ação”, dabar. Logo, dizer algo e não agir de acordo implicava mentira, falsidade.

Essência x aparência

Os gregos descreviam os objetos em relação à sua aparência. Os hebreus, ao contrário, consideravam mais a essência e função das coisas. Exemplo: Se mostrassem um lápis a você e lhe pedissem que o descrevesse, como seria sua descrição? Provavelmente, você diria: “O lápis é azul”, ou “é amarelo”; “tem ponta fina”, ou não; “é cilíndrico”, ou “é retangular”; “é curto”, ou “é comprido”; etc. Perceba que em todas essas características a ênfase está na aparência.

Um hebreu descreveria o mesmo lápis de forma bem mais simples e objetiva: “É feito de madeira, e eu escrevo palavras com isto.” Na cosmovisão hebraica, a essência das coisas e sua função eram mais importantes que a forma ou a aparência.

Por isso, os elogios de Salomão à sua amada no livro de Cantares parecem tão estranhos para nós, ocidentais. Dizer a uma mulher: “O teu ventre é monte de trigo” (Ct 7:2) pode ser perigoso hoje em dia! Mas, na cultura da época, a imagem do trigo trazia a ideia de fertilidade e fartura, e ter muitos filhos era o sonho de toda mulher.

Além de funcional e essencial, o estilo de descrição dos hebreus era pessoal – o objeto era descrito de acordo com a relação dele com a pessoa. Ao descrever um dia ensolarado, em vez de dizer: “O dia está lindo”, um hebreu diria: “O sol aquece meu rosto!” Daí a descrição de Davi: “O Senhor é o meu pastor” (Sl 23:1).

Teoria x prática

Na cosmovisão grega, “saber” era mais importante do que “ser”. Para os gregos, sabedoria era o resultado apenas do estudo, da contemplação e do raciocínio. O conhecimento era teórico, limitado ao mundo das ideias, e o mais importante era conhecer a si mesmo.

Para os hebreus, no entanto, o conhecimento era prático. Conhecer era experimentar, se envolver com o objeto de estudo. O conhecimento de Deus era o mais importante, e a verdadeira sabedoria estava em saber ouvir. Na mentalidade hebraica, “temer a Deus” é o primeiro passo para ser sábio (Sl 111:10, NTLH).

Tempo x espaço

Quando queremos incentivar alguém a prosseguir, dizemos: “Bola pra frente!”, e quando queremos dizer que algo ficou no passado, falamos: “Ficou para trás.” Mas quem nos ensinou que o futuro está à nossa frente e o passado atrás? Foram os gregos. Eles tinham uma visão espacial do tempo, e nós herdamos isso.

Os hebreus (que valorizavam mais o tempo do que o espaço) enxergavam passado e futuro de modo diferente. Para eles, mais importante do que localizar o tempo de forma espacial era defini-lo em ações completas e incompletas (aliás, “completo” e “incompleto” são os nomes que se dá aos tempos verbais do hebraico).

Na mentalidade hebraica antiga, o passado (tempo completo) estava à frente (as palavras temol e qedem, “ontem” ou “antigamente”, significam também “em frente”), e  o futuro (tempo incompleto) estava atrás – mahar, “amanhã” ou “no futuro”, vem da raiz ’ahar, que significa, entre outras coisas, “ficar atrás”, ou “para trás”. (Veja Êx 5:14Jó 29:2Êx 13:14 e Dt 6:20).

E por que eles entendiam o tempo assim? O pensamento hebraico era simples e direto. O passado já foi completado, por isso podemos olhar para ele como se estivesse diante dos nossos olhos. O futuro, porém, ainda está indefinido, incompleto, por isso, ainda é desconhecido e é como se estivéssemos de costas para ele.

História cíclica x linear

Outra curiosidade sobre o tempo é que os gregos viam o curso da história como uma espécie de roda gigante. Para eles, a história se repetia eternamente, num eterno vai e vem sem destino.

Para os hebreus, no entanto, a história era linear, ou seja, caminhava em linha reta. Deus criou o começo da história, e faz com que ela prossiga para um fim, o chamado “Dia do Senhor” (yom YahwehJl 2:1; 2Pe 3:10). Mas esse fim será apenas o começo da eternidade (‘olamDn 12:2).

Deus x “eu”

Na cosmovião grega o “eu” (ego) era o centro de tudo. Diz a lenda que à entrada do Oráculo de Delfos, na Grécia Antiga, havia a frase “Conhece-te a ti mesmo”. Na cultura hebraica, por outro lado, Deus era o centro de todas as coisas. Os hebreus não dividiam a vida, como nós fazemos, em sagrada e secular. Para eles, essas duas áreas eram uma coisa só, sob o domínio de Deus.

Até mesmo as tarefas do dia a dia eram consideradas, de certa forma, sagradas. A palavra hebraica ‘abad – “servir” ou “adorar” (Sl 100:2) – pode ser também traduzida como “trabalhar”. Na lavoura, na escola ou no templo, a vida era vista como um constante ato de adoração (1Co 10:31Cl 3:21Ts 5:17). Para eles, a adoração era mais do que um evento (como o culto na igreja), mas um estilo de vida.

Pensamento corporativo x individualismo

Os gregos valorizavam a individualidade acima de todas as coisas. Os hebreus, por sua vez, tinham uma “personalidade corporativa” e enfatizavam a vida em comunidade. Na cosmovisão hebraica, havia uma ligação inseparável entre o indivíduo e o grupo. A vitória de um era a vitória de todos, e o fracasso de um representava o de todos. Por isso, para os cristãos, se, por um lado, a falha de Adão lá no Éden representou nossa queda, por outro lado, a morte de Cristo na cruz dá a todos a oportunidade de salvação (1Co 15:22Jo 3:16).

Amor: decisão x emoção

No mundo grego, o amor, em suas várias formas, se resumia a um mero sentimento. Na visão hebraica, porém, amor é mais que isso: é uma escolha (em Ml 1:2, 3 e Rm 9:13, “amar” e “odiar” são sinônimos de “escolher” e “rejeitar”). Você decide amar, independentemente dos seus sentimentos. É algo prático, traduzido em ações – a Deus e ao próximo (Mt 22:35-40).

Paz: presença x ausência

No pensamento ocidental, paz depende das circunstâncias. É a ausência de guerras, problemas e perturbações. Mas para os hebreus, paz não implica ausência, e sim presença. Só a presença de Deus pode trazer bem-estar, segurança e felicidade – que são ideias contidas na palavra shalom (Jz 6:24). Com Deus, “pode cair o mundo”, mesmo assim, é possível estar em paz.

Integral x dualista

Os gregos tinham uma visão dualista da realidade. Com base nos ensinamentos de Platão, acreditavam que havia dois mundos: o das ideias (ou do espírito) e o mundo real. De acordo com essa visão, o ser humano era formado por duas partes: espírito (ou alma) e corpo. Para eles, o corpo e as coisas materiais eram ruins, e apenas o “espírito” e as coisas do “além” podiam ser consideradas boas. Assim, a morte, na verdade, seria a libertação da alma, que enquanto estivesse no corpo, estaria presa ao mundo material.

Já os hebreus tinham uma visão integral da vida. Para eles, o ser humano era completo, indivisível. Na mentalidade hebraica, alma se refere ao indivíduo como um todo (corpo, mente e emoções). De acordo com Gn 2:7, nós não temos uma alma; nós somos uma alma, ou seja, seres vivos (nefesh hayyah, em hebraico). Ao contrário dos gregos, que criam na imortalidade do espírito, os hebreus acreditavam na mortalidade da alma e na ressurreição (Ez 18:4Dn 12:1, 2).

Espiritualidade x misticismo

Para os gregos, espiritualidade era algo místico. Ser espiritual significava desprezar totalmente a matéria e se conectar ao “outro mundo”. Esse desprezo das coisas materiais variava entre dois extremos. Alguns, por exemplo, renunciavam completamente os prazeres físicos, tais como a alimentação e o sexo, a ponto de mutilar seus órgãos genitais. Outros, por outro lado, se entregavam a todo tipo de sensualidade e orgia. Ambos os comportamentos tinham como base a ideia de que o corpo é mau, e que, no fim das contas, o que importa mesmo é a “alma”.

Mas para a cosmovisão hebraica, o corpo foi criado por Deus, e por isso é sagrado. A Bíblia diz que “do Senhor é a Terra” (Sl 24:1). E enquanto criava o mundo, Deus viu que “era bom” (Gn 1:10, 12, 18, 21) – e não mau, como acreditavam os gregos. Deus fez o mundo (as coisas materiais), e deu ao homem a responsabilidade de cuidar dele.

Para os hebreus, portanto, espiritualidade tinha a ver, sim, com esta vida. Ninguém precisa esperar chegar ao Céu para ser espiritual: podemos desenvolver a espiritualidade no dia a dia, nas situações comuns da vida e no trato diário com as pessoas. Não é preciso se isolar em um monastério, recorrer à meditação transcendental ou entrar num estado de transe para atingir “o mundo superior”. Basta viver conectado com Deus – aqui e agora (Lv 20:71Pe 1:16).

 

Fontes: Thorleif Boman, Hebrew thought compared with greek (Norton, 1970); Marvin R. Wilson, Our Father Abraham (Eerdmans, 1989); _________, “Hebrew thought in the life of the church”, The living and active word of God (Eisenbrauns, 1983); Jacques Doukhan, Hebrew for Theologians (Univertity Press, 1993); Ferdinand O. Regalado, Hebrew thought: its implications for adventist education (Universidade Adventista das Filipinas, 2000); Daniel Lopez, doutorando em linguística pela UFF-RJ e professor de Filosofia da Educação na UFRJ; Rodrigo P. Silva, graduado em filosofia, arqueólogo e doutor em Teologia; site <www.ancient-hebrew.org/12_thought.html>.

 

Curiosidades

raiva mexe com tudo em você, inclusive seu nariz. A palavra “ira” em hebraico é a mesma usada para “narinas”. Isso porque a raiva acelera a respiração e dilata as fossas nasais.

Em hebraico, a palavra “orgulho” vem de uma raiz que significa ser levantado. O motivo? É que o orgulhoso se sente acima de todo mundo.

Para os hebreus,  não era simplesmente acreditar. Era ser fiel a Deus, como uma estaca fincada firmemente no chão.

Na Antiguidade, inclinar-se era um sinal de respeito. A palavra “bênção” ou “presente”, no idioma de Israel, significa “aquilo que se dá com o joelho dobrado”.

Comunhão, para o povo da Bíblia, significava andar com Deus, como bons amigos. Moral da história: a espiritualidade pode ser desenvolvida na rotina diária.

Em hebraico, “adorar” também significa “trabalhar”. Para os israelitas, todas as atividades do dia a dia faziam parte da religião e eram oportunidades de honrar a Deus.

“Palavra”, na língua de Israel, pode significar também “ação”. Por isso, para eles, dizer algo e agir de modo diferente é ser mentiroso.

 

Fonte: http://conexao.cpb.com.br/secoes/reportagem/choque-de-cosmovisoes

Sobre Max Rangel

Servo do Eterno, Casado, Pai de 2 filhas, Analista de Sistemas, Fundador e Colunista do site www.religiaopura.com.br.

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