Você não precisa ser um homem das cavernas para conseguir sobreviver na selva. Pelo contrário
Eu me arriscaria a dizer que este cenário pode até mesmo remeter a um longo período de nossa existência neste planeta. Porém, a distância tecnológica e cronológica acaba nos levando a criar fantasias e conceitos que não se aplicavam para os povos primitivos de antes, muito menos para os humanos contemporâneos.
Graças às centenas de filmes e programas de tv do gênero já produzidos, muito se tem ouvido falar hoje em dia sobre o assunto e apesar de haver, notadamente, um número considerável de boas informações lá fora, há também muita fantasia e desinformação. Difundida erroneamente por aqueles que, supostamente, são “peritos” no assunto, mas que acabam levando outros a se exporem à riscos desnecessários. E correr riscos desnecessários na natureza selvagem pode ser fatal. Sem exageros. Já rolou.
Registro arqueológico
Para entendermos um pouco melhor a questão do homem na natureza selvagem, basta olhar para o que registros arqueológicos nos revelam.
Em 1991, historiadores descobriram ao norte da Itália, uma múmia congelada e preservada por mais de cinco mil anos de idade, chamada pelos cientistas de Otzi, “O Homem de Gelo”. Mas o que nos interessa é que junto a ela foi encontrado boa parte de seu equipamento primitivo. Otzi carregava uma série de itens fundamentais para sua sobrevivência cujos equivalentes modernos podem ser encontrados hoje em dia com qualquer montanhista. Isso significa que a mesma lógica utilizada pelo nosso amigo do gelo há 5300 anos continua a ser aplicada até hoje.
Vale destacar que ainda naquela época, os objetos utilizados presavam pela multifuncionalidade. O cinto que mantinha a perneira de Otzi erguida, cobrindo suas pernas, também servia como kit de sobrevivência. Ele continha itens menores indispensáveis como lâminas, iscas de fogo e, pasmem, remédios.
Alguns dos utensílios que Otzi carregava há 5300 anos.
É certo que para cada objeto levado por Otzi, há um correspondente atual que fará a mesma coisa, com um grau de desempenho melhor e mais rápido que seus equivalentes pré-históricos, poupando tempo e calorias para o ser humano moderno. O que não muda é que, tanto ontem como hoje, seguimos precisando de abrigo, fogo, formas de nos alimentar e nos hidratar. O homem apenas aperfeiçoou a forma como ele atendia suas necessidades. As necessidades não mudaram.
Largado no mato
Durante minha juventude, me lembro de sonhar viver da mata sozinho. Por necessidade ou vontade mesmo, me imaginava vivendo na floresta como um de nossos ancestrais. Mas ao longo de minha jornada, percebi que este desejo de viver sozinho, isolado, completamente auto dependente e autossuficiente é uma fantasia que não traduz a realidade humana ao longo da história.
Não adianta achar que vai conseguir viver muito tempo sozinho no meio do mato.
A ideia contemporânea de sobrevivência na selva ou em qualquer ambiente natural hostil é apenas por um período limitado de tempo. Estatísticas americanas sobre situações de sobrevivência mostram que, em geral, estamos falando de um cenário de 72 horas ou 3 dias, dentro dos quais o sobrevivente sai vivo ou não. Claro que há situações em que este período pode se estender por bem mais tempo, mas tais casos ocorrem com bem menos frequência.
Isso ilustra o fato de que nós pouco podemos fazer sozinhos. Não importa quanto conhecimento e experiência mateira nós tenhamos, nosso sucesso em nos manter vivos em tais situações de longos períodos é limitado. Basta ficar doente e precisar da ajuda de terceiros ou tratamento médico e pronto. Todas as ilusões caem por terra.
Imagine ter de realizar as tarefas mais básicas como pegar lenha para o fogo, fazer fogueiras, construir ou consertar abrigos, coletar e tratar água, obter alimentos, deslocar por um terreno acidentado, entre outras coisas, estando doente ou ferido. E as possibilidade disso acontecer em ambientes hostis é enorme. Muito dificilmente, qualquer pessoa que esteja com cortes ou fraturas infeccionadas, que esteja enferma, com dor ou enfraquecida, conseguiria dar conta de todos os aspectos fundamentais para manter-se vivo no mato.
Manter-se vivo na floresta não é tarefa fácil, ainda mais se você está doente ou machucado.
Os registros arqueológicos novamente nos apresentam um caso em que verificamos a importância do grupo na sobrevivência individual em tempos de enfermidades. Em meio às ossadas de um grupo de Homo erectus, havia um indivíduo cujas marcas na mandíbula indicavam que ele havia sofrido uma forte infecção na boca.
Apesar do problema, o indivíduo conseguiu sobreviver pois havia sinais de cicatrização e recuperação. Mas para que ele pudesse vencer a doença, ele foi cuidado e alimentado com comida mastigada por outros, uma vez que era incapaz de fazer tal movimento. Ou seja, se não fosse pelos cuidados de seu clã, ele teria padecido por causa de sua enfermidade muito antes. E isso nos serve de ensinamento hoje em dia.
Pensarmos em autossuficiência em ambientes naturais hostis, estando completamente só, por um longo tempo continua sendo apenas uma fantasia de criança.
Preparação é indispensável
Na maior parte das vezes, o indivíduo terá muito pouco controle dos fatores envolvidos num cenário de sobrevivência em ambientes naturais hostis. Assim sendo, a preparação se torna uma ferramenta preciosa. É ela que vai possibilitar maior ou menor domínio do ambiente e suas adversidades. Isso significa entrar no mato com itens que vão poupar tempo e calorias e que te deixam mais independente dos recursos ou condições naturais que podem não estar favoráveis ou disponíveis em um momento crucial.
Experimenta tentar fazer fogo por fricção nessa friaca com tanta umidade.
Devemos entender que a natureza não está contra nem a favor de nós. Ela é neutra e tem suas regras. Os indivíduos que encaram a natureza como um “inimigo a ser vencido”, assumem uma posição arrogante e perigosa para si próprios, enquanto deveriam poupar energia para se adaptar e se ajustar às condições impostas pelo ambiente.
Para ajudar a melhorar nossas chances de superar os desafios do ambiente devemos sempre carregar um kit de sobrevivência moderno. Quando digo isso em algum dos meus vídeos sempre aparecem comentários de pessoas insatisfeitas dizendo que eu deveria ensiná-las a fazer fogo com fricção, filtrar água com a camiseta, etc. Mas essa lógica está completamente equivocada.
Quando você acumula experiência na selva, você percebe justamente a dificuldade que é ter de se virar fazendo fogo por fricção ou na falta de água potável. A realidade nos ensina que existe uma série de variáveis que podem impedir que você consiga, por exemplo, produzir fogo. A técnica depende do posicionamento do seu corpo, do tipo de madeira certa, da umidade do ambiente e do material, entre outras coisas. Tantas limitações só me fazem dar mais valor a um isqueiro à gás simples.
Há um velho ditado entre os praticantes das técnicas mateiras que diz: “Quanto mais aprendo sobre como fazer fogo da forma primitiva, mais aprecio trazer um bic comigo!”
Não há uma justificativa moderna sequer para uma pessoa não ter um isqueiro do tipo Bic, consigo. Ele é leve, não ocupa espaço no bolso, é barato e até pode ser levado a bordo de aviões comerciais, ônibus, trens, etc. Muitos já padeceram no passado por não terem a garantia de uma chama tão rápida, em tão pouco tempo e sem nenhum esforço físico, além do movimento do polegar.
As técnicas primitivas, de bushcraft, ou seja lá como você queira chamar, não devem ser sua principal opção. Elas devem representar um plano “b” ou “z” apenas no caso de não ter à disposição os recursos modernos. O planejamento de sobrevivência deve ser feito com maturidade e seriedade, entendendo sua realidade, o local e o momento em que se encontra. Seu preparo tem de ser sólido, uma vez que sua improvisação nunca será! Não se planeja improvisar.
Negligenciar tal realidade é agir de forma, no mínimo irresponsável e arrogante. Dois aspectos que combinados geralmente levam a tragédias.
Inversão de prioridades
Além de subestimar a necessidade de preparação e desprezarem a utilidade de um kit de sobrevivência moderno, um outro erro que geralmente cometemos é supervalorizar o condicionamento físico.
Com o passar dos anos, não foi raro encontrar muita gente com pouca experiência ou conhecimento das prioridades em situações de risco, confiarem excessivamente na sua habilidade física, capacidade de corrida ou no condicionamento em geral.
Vai correr pra onde agora?
Reforçada por certas abordagens vistas na tv, essa mentalidade acaba por enfatizar ou sobrevalorizar um aspecto que, apesar de sua importância, não seria capaz de salvar ninguém na maioria dos cenários plausíveis que podemos levantar. Há tantos outros vetores em atuação que o resultado ser determinado apenas por um único fator é praticamente impossível. Uma decisão errada, uma curva ou virada na trilha despercebida, um abrigo mal escolhido, um descuido com seu equipamento e, adeus, ser forte ou ser rápido vai significar muito pouco pra você.
Sobre alguns desses aspectos podemos ter um grau maior ou menor de controle, sobretudo se tivermos recursos disponíveis para atenuarem os efeitos e demandas desses cenários – como a preparação de emergência já mencionada. Ou seja, há coisas que controlamos e dependem de nossa resposta pessoal e há outros aspectos sobre os quais não temos controle algum e nada ou quase nada podemos fazer para interferir.
A mata pode confundir. Às vezes parece que é tudo igual e um pequeno erro pode ser suficiente.
Assim sendo, se tivermos que avaliar a importância de qualquer tipo de condicionamento que pudermos ter para tais situações de emergência, nós devemos valorizar mais o condicionamento mental (ou preparo psicológico) relevante na hora de enfrentar situações de grande stress, do que o número de flexões que alguém pode fazer ou quantos quilômetros a pessoa é capaz de correr.
Nós já nascemos equipados com a ferramenta mais importante para nosso sucesso em situações de sobrevivência: nosso cérebro. Ao percebermos a importância da atitude mental para enfrentarmos os desafios impostos pela sobrevivência humana em ambientes naturais hostis, poderemos compreender e trabalhar mais claramente os aspectos gerais da nossa resposta para tais situações de risco.
No que tange aos aspectos da sobrevivência (vetores) sobre os quais alguém tem controle, destacamos nessa ordem o eixo de resposta pessoal com os elementos atuantes: aspecto psicológico, conhecimento (técnico e prático), equipamentos, e preparo físico.
A nossa interferência e resposta para situações de sobrevivência dependerá, exclusivamente, desses quatro elementos, mas há uma importância muito grande em se perceber a participação e relevância de cada um deles no eixo de resposta pessoal.
A diferença entre quem consegue sair dessa e quem não depende 90% da capacidade mental.
Hoje sabemos que 90% do sucesso de um indivíduo em uma situação adversa é determinado por sua capacidade mental de lidar com todos os aspectos e como ele responde a tais situações. Todo seu conhecimento técnico e prático relacionado à sobrevivência ou aos recursos modernos disponíveis estarão sujeitos ao seu autocontrole para tomar as decisões certas e agir da melhor forma possível.
Na maioria dos casos, uma atitude positiva e proativa, a capacidade de resiliência, persistência e perseverança possuem um papel muito mais relevante para o sucesso do sobrevivente, que seu condicionamento físico ou quão bom e moderno seu equipamento é.
Recentemente a tripulação de um navio naufragado ficou a deriva no oceano por duas semanas. Eles estavam em dois botes bem equipados com tudo aquilo que precisavam para se manterem vivos por muito tempo e estavam ligados um ao outro por um cabo de aproximadamente vinte metros. Expostos exatamente às mesmas dificuldades e privações e dispondo dos mesmos bons recursos modernos para lidarem com as demandas técnicas/práticas do cenário de sua luta pela vida.
Pelo menos eles não tinham que dividir o bote com um tigre.
Após as tais duas semanas no mar, apesar de seu desgaste, a tripulação de um dos botes saiu andando para dentro do navio que lhes salvava, enquanto a outra parte deles teve de ser carregada para fora de seu barco e transportada para dentro do navio. Um de seus integrantes, o capitão do navio naufragado, havia falecido pouco antes de serem avistados e salvos.
A razão para dois desfechos tão distintos é a atitude mental positiva, proativa e a vontade de viver da tripulação de uma das balsas. Eles conseguiram manter seu moral alto o bastante para obterem os aspectos básicos de sua sobrevivência e não se entregaram ao desespero, abandono, falência psicológica e posteriormente, a falência física geral, ocorridas na outra balsa. Lá seus membros não conseguiram lidar com todas as dificuldades de seu cenário, por não terem o domínio mental crucial para continuar a agir persistentemente todo o tempo. Eles se entregaram em seu desânimo, desgosto, frustração e abandono e entraram em um estado mórbido de estagnação.
Tal fato, a exemplo de tantos outros, ilustra que um grande número de pessoas que falecem em situações de sobrevivência desistem mentalmente antes de suas condições físicas falharem.
Se você estiver num grupo de pessoas, lute para manter a auto estima das pessoas alta.
É na mente que está o segredo do sucesso do sobrevivente. O jogo é ganho ou perdido lá, não importa quão ruim a situação possa parecer externamente. Quando ouvimos que, na natureza, os mais fortes sobrevivem, associamos tal força ao vigor físico, mas a batalha se dá em outra camada.
Até porque, como dissemos, não adianta lutar contra a natureza. Tal batalha já está perdida pra nós. É por isso que moramos em ambientes urbanos modernos sobre os quais temos muito mais controle. Uma vez na natureza, aprendemos que é ela quem manda e as coisas são como são. E foi justamente essa nossa capacidade de “dançar conforme a música” que possibilitou sairmos da África e habitarmos outras áreas inóspitas e perigosas do planeta.
Acreditar que agora somos capazes de enfrentar sozinhos qualquer adversidade imposta pela natureza é abrir mão do que a evolução nos deu de melhor: a inteligência.
Giuliano Toniolo
Formado pela UFMG; pioneiro na divulgação e popularização das técnicas de sobrevivência do YouTube no Brasil. Diretor e instrutor da escola Mestre do Mato e consultor em sobrevivência da Discovery Channel.