Hoje tem coluna do Paladar e falo de um ingrediente que você não vai encontrar em nenhum supermercado. Mas conhecimento não ocupa espaço, não é mesmo? Fica para quando viajar pelo sertão.
MOCÓ DE MACAMBIRA
Pegando o gancho da última coluna, sigo pelo Sertão não sem antes tomar devidos cuidados com as infinitas armadilhas que ele nos arma a cada passo. Tudo para para defender o bioma tão frágil que é a Caatinga. São caboclos raivosos que constroem suas colmeias nas forquilhas em pés de amburana e picam doído; as folhas espinosas e peçonhentas da favela com seu veneno que arde, coça e queima quando nos roça a pele; os espinhos grandes do mandacaru que podem atravessar pés calçados; as agulhas invisíveis e certeiras de palmas, palmatórias e cachacubris; os pelos urticantes do cansanção e, finalmente, os maciços de macambira com suas folhas de bordas modificadas em espinhos curvados.
A macambira tem o agravante que a intervalos irregulares os espinhos resolvem mudar a direção da curvatura formando verdadeiras garras traiçoeiras. Se por acaso você se enrosca nos espinhos da macambira, solta-se de um mas não escapa do outro. Quanto mais tenta se desvencilhar se orientando pela direção dos espinhos, mais aqueles contrários se afundam na sua carne, rasgando sem dó. Dizem por ali que na guerra de Canudos, os soldados do exército eram atraídos pela tropa do Conselheiro para as moitas de macambira para que ali ficassem enganchados. Claro, estas armas naturais não foram páreo para o poderio das armas de fogo. Mas ao menos ganharam tempo.
É tão difícil escapar das unhas da macambira que gente ruim, falsa e sem piedade também recebe o apelido de Macambira. Então você já pode dar uma folga para a jararaca e de vez em quando variar o xingamento – se é que alguém ainda usa o termo.
Mas macambira é ainda sinônimo de resistência, resiliência e sustento. É com seu talo carnudo que o gado e a cabra se alimentam na seca – os criadores queimam as folhas para restar um tipo de batata que pode ser usada também para fazer farinha nutritiva para consumo humano. Era é rica em proteínas. Com esta farinha pode ser feito mingau, farofas, angus, biscoitos. As folhas sem as bordas espinhentas são usadas pra fazer amarrilhos, cestarias e cobertura para casas. E a moita de macambira protege dos animais maiores as mudas novas de árvores que vêm chegando. Para os animais pequenos ela serve de esconderijo.
Isto foi só para situar o ambiente de onde vem a iguaria de que trato aqui. Mocó de macambira, no Sertão por onde andei, interior da Bahia, região de Canudos, é o broto de uma bromélia típica da Caatinga, de nome de batismo Bromelia laciniosa, mas chamada também de pitó de macambira ou maçã de macambira – por sua textura crocante.
A amiga Jussara Dantas já havia me dito uma vez que quando era criança pegava uma trilha de sua casa no Caititu para o povoado Caratacá para ir à escola e que durante o trajeto parava inúmeras vezes para comer mocó de macambira. Não porque estivesse com fome, mas porque era bom mesmo, principalmente na época das águas, quando a planta lança vários brotos. Mesmo na seca como acontece agora a gente encontra estes mocós aqui e ali. Eu já tinha comido uma vez mas foi um brotinho, mal deu pra completar a apreciação. Na última vez que estive lá, porém, munida de vontades e sem planejamento – já que saímos apenas para um piquenique na sombra de uma catingueira, saí pelo meio do mato com Jussara e algumas crianças para tentar encontrar uma mãozada de brotinhos. Guardadas as devidas proporções e gourmetizando a situação, me senti caçando trufas ou cogumelos com a diferença que os mocós estavam bem ali na nossa frente e sem nenhum apelo.
As crianças adoram os brotos e corriam na frente gritando “se eu achar, é meu; se eu achar é meu”. Com olhos treinados e alturas condizentes para enxergar o chão, elas sempre chegavam na frente. Quando Jussara achava um, sem ferramentas adequadas – ao meu ver, luvas de louro e tesoura de poda -, reclamava da dificuldade de tirar os brotos sem machucar as mãos. Perguntei como fazia quando era criança e ela respondeu que usava suas mãos pequenas. Com habilidade as crianças enfiam suas mãozinhas por baixo das folhas e torcem o talo sem machucar, ação quase impossível para mãos grandes. A minha, então, nem se fala. No fim, saí meio machucada, mas com uns três brotos para compensar. E as crianças ficaram com dó e me deram mais alguns.
Diferente daqueles alimentos usados nos períodos de fome, como a farinha de bró, um amido tirado do miolo de uma palmeira à moda do sagu – que também é feito originalmente à partir da fécula de uma palmeira embora possa ser produzido com outros amidos como a de mandioca -, o mocó de macambira não traz recordações ruins. Ao contrário. Mesmo tendo abandonado o hábito, não há por ali quem não suspire de prazer à simples menção desses palmitinhos crocantes. A gente vai descascando o broto, tirando camadas e camadas de miniaturas daquelas folhas espinhentas até chegar ao miolo branco, tenro e adocicado. O rendimento é baixíssimo e talvez seja isto que o torne ainda mais desejável.
Quanto comi pela primeira vez não pude deixar de comparar àquelas deliciosas “castraure” italianas de Sant´Erasmo – são os primeiros brotos da alcachofra, extirpados assim que despontam para que as várias outras se desenvolvam melhor. Não pelo sabor, mas pela situação e pelo caráter juvenil de broto tenro. Com a diferença de que as castraure são extremamente valorizadas.
Não sei se um dia alguém vai se interessar em cultivar macambiras para tirar batatas e mocós. Dificilmente vamos ver estes brotos nas feiras, supermercados ou lojas de artigos para gourmets, mas já ficaria feliz se os próprios sertanejos incluíssem mocós na dieta e passassem a proteger a espécie – que vive ameaçada com a perda galopante da Caatinga e pela prática de queimar a planta para conseguir alimento para os animais. Com um mínimo de manejo seria possível ter tudo isto e ainda sobraria para nós todos quando fôssemos visitar o Sertão, um lugar para onde todo brasileiro deveria ir ao menos uma vez na vida.
A receita mais tradicional para se apreciar um mocó de macambira é entrar na Caatinga, tirar o broto, descascá-lo e abocanhá-lo ali mesmo. Mas tendo em mãos um bom tanto de mocós de macambira, podemos fazer tudo o que fazemos com os palmitos – saladas, recheios, sopas etc. Assim que mordi um pensei numa salada com um molho leve e adocicado como aqueles usados para a salada de mamão tailandesa, porém com ingredientes comuns no Sertão: rapadura, alho, limão, pimenta, cebolinhas brancas e roxas, tomatinho, coentro. E não é que ficou muito bom! Mas, claro, você pode adaptar com o que tiver por perto desde que tenha uma mãozada de macambiras.
Salada de mocó de macambira
20 mocós de macambira
1 dente de alho picados
1 colher (chá) de rapadura raspada
2 colheres (sopa) de suco de limão
Sal a gosto
Pimenta ardida, opcional, a gosto
Pimenta rosa (aroeira), opcional, passada por peneira para ir só a película sem sementes
5 tomatinhos cortados ao meio
4 cebolinhas brancas, tipo echalotas, em fatias
4 cebolinhas roxas, tipo echalotas, em fatias
2 colheres (sopa) de folhas de coentro
Lave os mocós, desfolhe até encontrar o miolo macio e corte em rodelas. À parte, soque no pilão o alho com a rapadura e junte, aos poucos, o suco de limão. Mexa bem pra dissolver o açúcar. Tempere com sal e os temperos que for usar. Numa cumbuca, coloque o mocó de macambira, os tomates e as cebolas. Junte o molho, misture e espalhe por cima as folhas de coentro. Sirva com peixe assado.
Rende: 4 porções
Fonte: http://come-se.blogspot.com.br/2016/08/moco-de-macambira-coluna-do-paladar.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed:+Come-se+(come-se)