Adventistas poligâmicos, injustiçados
Extraído de “Adventistas .poligâmicos, injustiçados” — Revista Zelota.
Por Ronald Lawson, Sociólogo adventista australiano e colunista da revista Zelota.
A poligamia tem sido o problema mais complexo, desconcertante e persistente relacionado ao casamento, encontrado pelas igrejas em seu esforço missionário. Os maiores problemas foram encontrados no continente Africano, onde essas formas de casamento eram mais comuns. Dividirei minha apresentação em três segmentos: (1) o primeiro irá esclarecer os termos-chave que serão usados e considerar as funções desempenhadas pela poligamia nas sociedades tradicionais africanas; (2) o segundo irá explorar como as várias missões cristãs que precederam os adventistas na África lidaram com os convertidos poligâmicos; (3) o terceiro considerará como os adventistas se relacionavam com os convertidos que já estavam envolvidos em casamentos pluralistas, e como isso mudou com o tempo.
A palavra poligamia se refere a uma cultura ou situação em que uma pessoa tem mais de um cônjuge simultaneamente. Existem dois termos mais específicos que se enquadram nessa categoria geral: “poliginia” é a forma de poligamia em que um homem tem várias esposas; “poliandria” é a forma em que uma mulher tem vários maridos. A poliginia é muito mais comum que a poliandria: é encontrada em muitas partes da África, Ásia e Papua-Nova Guiné. Até onde eu sei, a poliandria é encontrada apenas nas terras altas do subcontinente indiano e em um pequeno grupo de ilhas no norte do Pacífico. Dos exemplos de poligamia nas Escrituras Hebraicas, heróis como Abraão, Jacó, Davi e Salomão praticavam a poliginia; e quando Paulo instruiu a igreja primitiva que um presbítero deveria ser “marido de uma só mulher”, ele parece também ter descartado candidatos políginos. Usarei o termo “poligamia” nesta apresentação porque é a palavra mais conhecida, mas na verdade todos os casos serão políginos.
Deixe-me apresentar dois outros termos, “patrilinear” e “matrilinear”. Em uma sociedade patrilinear, a linhagem masculina é a chave: quando um homem se casa, o grupo de parentesco da esposa recebe o preço da noiva [comumente conhecido como “dote”] e ela se muda para a comunidade do marido; todas as crianças pertencem ao grupo de seu pai. Se a esposa é divorciada, uma ocorrência rara em tal comunidade, ela é separada desta, inclusive de seus filhos, e não pertence a lugar nenhum. As sociedades patrilineares são de longe as mais comuns na África, e é entre elas que a poligamia floresceu. Em contraste, em uma sociedade matrilinear, a linhagem da mãe é central e geralmente enfatiza seu tio; o marido é uma figura bastante insignificante, e os divórcios são muito mais comuns. A poligamia é rara nesse caso.
Função da poligamia em sociedades tradicionais africanas
Como a poligamia muitas vezes é intrínseca ao modo de vida de uma sociedade tradicional como um todo, ela tem ramificações econômicas, sociais, políticas e religiosas. A poligamia era uma forma legal de casamento e florescia nas áreas rurais. Era um meio de fortalecer a linhagem, criando uma rede de alianças para o grupo de parentesco e garantindo a mão de obra necessária para cultivar a terra. Ela atendia às necessidades das mulheres em uma sociedade na qual, por causa das guerras entre etnias, elas podiam superar em muito os homens, e ainda assim era impensável que mulheres solteiras e viúvas vivessem sozinhas, onde o divórcio muitas vezes não era tolerado, pois os casamentos eram celebrados por grupos de parentes em vez de indivíduos, onde a procriação era mais valorizada e era o principal objetivo do casamento; e o fardo da falta de filhos era fortemente sentido. O sistema protegia os necessitados e assegurava que nenhuma criança fosse ilegítima, permitindo que os homens mais privilegiados tomassem as mulheres excedentes e estabelecessem famílias poligâmicas. Por exemplo, quando uma igreja se recusa a permitir que um membro entre em um casamento levirato com a viúva de seu irmão (um sistema que também foi estabelecido entre os hebreus em Dt 25.5), ela destrói os mecanismos daquela sociedade que auxiliam a viúva e os órfãos.
Foi estimado que em 1970, logo após o fim do período colonial na África, mais de 20% das famílias eram poligâmicas em 75% das sociedades africanas, e que o número médio de esposas a cada 100 homens casados era 150 na África Subsaariana [parte do continente africano situada ao sul do Deserto do Saara]. Embora as mudanças econômicas e sociais, especialmente aquelas associadas à urbanização, tenham reduzido gradualmente a incidência da formação de tais casamentos desde então, a poligamia continua a ser uma preocupação central para as igrejas na África.
As missões cristãs e os convertidos poligâmicos na África
O cristianismo cresceu em um mundo basicamente monogâmico. A primeira declaração cristã oficial sobre a poligamia foi feita em 1201, quando o bispo de Tibério perguntou ao Papa Inocêncio III se os convertidos poligâmicos deveriam ficar com todas as esposas ou apenas uma, e com qual delas. O Papa insistiu na monogamia estrita, chamando as uniões poligâmicas de adúlteras, e recusou o batismo a qualquer pessoa em um casamento poligâmico. A Igreja Católica não enfrentou uma sociedade amplamente poligâmica até que os missionários entraram na Ásia e na América no século 16, e os protestantes no século 19 — primeiro, em uma extensão mais limitada, em partes da Ásia e, em seguida, muito mais disseminada, na África. Ambos fizeram o que estavam acostumados em suas culturas monogâmicas ocidentais. No entanto, suas políticas se mostraram destrutivas.
Quando a Igreja Anglicana abordou o assunto na África Ocidental em meados do século 19, os missionários tinham pouca teologia do casamento e pouca compreensão da relatividade dos padrões sociais (os antropólogos, por exemplo, ainda não haviam estudado sobre casamento). Seu conceito de casamento cristão era o que conheciam em casa. Eles consideravam grande parte da vida africana como imoral e condenável, especialmente a poligamia e a riqueza das noivas, e eram quase universalmente repelidos pela prática. Os missionários, muitas vezes, presumiam que a luxúria era o verdadeiro motivo da poligamia. Visto que as uniões poligâmicas eram vistas como adúlteras, as missões não hesitaram em decretar que esses casamentos deveriam ter um fim abrupto se os parceiros desejassem se tornar cristãos. Assim, eles transformaram as boas novas do evangelho em más notícias. Em 1857, Henry Venn, secretário da Church Missionary Society (Sociedade Missionária da Igreja), redigiu um memorando que influenciaria o debate no século seguinte. Sua declaração principal era: “um polígamo não pode ser legalmente admitido pelo batismo na Igreja de Cristo.” No entanto, alguns missionários individuais passaram a compreender melhor a situação humana e a ter dúvidas.
Em 1888, o assunto estava tão turbulento que foi levado à Conferência de Lambeth, o órgão máximo da Igreja Anglicana. Os bispos votaram que os homens poligâmicos não deveriam ser batizados como cristãos, mas mantidos sob instrução até que estivessem em posição de se conformar à lei de Cristo. Essa posição teve grande e contínua influência, não apenas entre os anglicanos na África, mas também entre outros protestantes na região, embora várias igrejas continuassem a batizar polígamos na Ásia, especialmente na China. Assim, a política da igreja transformou a poligamia no pecado imperdoável: somente o divórcio poderia qualificar os polígamos reformados para a entrada e comunhão no reino de Deus. O documento de Lambeth foi menos inflexível em relação às esposas polígamas, permitindo seu batismo em algumas circunstâncias, sendo estas deixadas para a decisão local.
As diretrizes geralmente apresentavam ao polígamo convertido duas opções. A primeira, que era inicialmente a prática mais comum, era que ele deveria repudiar todas, exceto uma de suas esposas antes de ser batizado (havia outra variação aqui, pois enquanto alguns insistiam que a primeira esposa fosse a escolhida , outros permitiam que ele escolhesse qualquer uma de suas esposas). Essa escolha era dolorosa para o núclo, muitas vezes separando as esposas descartadas de seus filhos e deixando algumas tão desamparadas que eram forçadas a recorrer à prostituição para sobreviver. Embora as esposas expulsas fossem elegíveis para o batismo, o resultado final da política era que elas geralmente ficavam isoladas do cristianismo.
Com o passar do tempo, os protestantes passaram a ver as uniões poligâmicas não como adultério, mas como uma forma inferior de casamento que, caso forçado a um divórcio, provavelmente resultaria em um alvoroço inaceitável. Muitos concluíram que era melhor mantê-los, embora representasse um obstáculo intransponível para o batismo. Consequentemente, o pêndulo oscilou cada vez mais em direção à segunda alternativa, sob a qual todas as esposas eram elegíveis para o batismo, mas o homem era mantido esperando, sem batismo, às margens da igreja, até que a morte de uma esposa ou esposas o deixasse com apenas uma cônjuge.
Os católicos, por sua vez, estavam mais firmemente convencidos de que as relações poligâmicas eram adúlteras e, portanto, não eram casamentos legítimos. Consequentemente, a solução tradicional deles era semelhante à primeira escolha listada acima — o polígamo deveria abandonar todas, exceto uma de suas esposas, antes de ser batizado. A questão da possibilidade de batizar as esposas, e em quais condições, nunca foi levantada. A preocupação era com o batismo do homem.
Durante o século 20, o problema se agravou quando muitas igrejas africanas independentes, que aceitavam membros poligâmicos, começaram a surgir na África Ocidental, à medida que as missões se tornaram mais conscientes dos danos que suas políticas estavam causando aos africanos poligâmicos. Por exemplo, percebeu-se que as famílias frequentemente se recusavam a permitir os divórcios exigidos pelas igrejas, e que os esforços para ter um marido apoiando sua esposa e filhos sem ter um relacionamento sexual criava tensões enormes que frequentemente terminavam em gravidez. Estudos recentes demonstraram que a família tradicional estava se desintegrando nas áreas urbanas em expansão. A política cristã em relação à poligamia foi considerada parcialmente responsável por isso: ela ensinou a muitas sociedades a possibilidade do divórcio. Com o colapso da família em todos os lados, não parecia mais tão evidente para as igrejas que as famílias poligâmicas deveriam ser separadas. Em vez disso, várias igrejas começaram a ver como sua principal responsabilidade promover a fidelidade e a estabilidade conjugal. Portanto, eles começaram a repensar toda a questão à luz das circunstâncias contemporâneas.
A política e a prática começaram a mudar nas décadas após a Segunda Guerra Mundial — lentamente a princípio, mas depois em um ritmo crescente. A primeira igreja ligada à missão a decidir batizar homens poligâmicos foi a Igreja Evangélica Luterana da Libéria, em 1951. Um seminário para toda a África sobre o lar e a família cristã, em 1963, recomendou que famílias poligâmicas inteiras pudessem ser batizadas e admitidas à comunhão. Isso levou a um período de intensa discussão e a várias missões menores agindo de acordo com a recomendação. No entanto, as missões maiores não cederam. Novos artigos e livros incentivando o batismo de polígamos começaram a aparecer com mais frequência nos círculos católicos, e também nos protestantes.
Em 1970, os Arcebispos Anglicanos da África encomendaram um relatório sobre o casamento cristão na África. O casamento poligâmico foi definido como “não uma série de relações sexuais frouxas, mas de simultâneos contratos de uniões estáveis sob uma forma de lei reconhecida pelo povo do país, celebrada com uma intenção vitalícia, e fornecedora de um lar permanente e um status legítimo para a prole […] Acabar com um casamento poligâmico em nome de Cristo, que nada disse explicitamente para condená-lo, às custas de realizar um divórcio, que Cristo proibiu explicitamente, é pagar um preço muito alto para alcançar uma conformidade teórica com parte do padrão cristão de casamento.” Também foi notado que os homens cristãos se sentiam obrigados a se divorciar de uma esposa estéril em vez de simplesmente acrescentar outra, aprendendo assim a prática americana da monogamia serial. Mais tarde, também ficou óbvio que a rejeição da poligamia resultou em muito mais adultério, Infecções Sexualmente Transmissíveis. O estudo anglicano, portanto, recomendou o batismo de famílias poligâmicas intactas que existiam antes da conversão. Os frutos deste estudo foram colhidos na Conferência de Lambeth de 1988, que, por iniciativa dos bispos da África Oriental, reverteu a proibição de batizar polígamos que não mantivessem apenas uma esposa. Os bispos argumentaram que a política existente resultou no abandono de mulheres e crianças ou na perda de convertidos a outras religiões. A resolução votada pela Conferência sustentou a monogamia como o ideal e proibiu os polígamos convertidos de tomarem outras esposas. Não disse nada sobre polígamos não serem capazes de ocupar cargos na igreja. Essas decisões da Conferência de Lambeth de 1988 claramente tornaram a Igreja Anglicana a vanguarda na tentativa de contextualizar a mensagem cristã para as culturas africanas.
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