3a. PARTE
2: SER UMA COMUNIDADE RESTRITA
“Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão ” – Rom. 5:1
Continuamos com nossa reflexão sobre a herança que o movimento leigo recebeu da IASD, e o que ele pode fazer para livra-se do fardo do passado, a fim de não se transformar em mais um filhote, gerado à imagem e semelhança dessa comunidade obscura, punitiva e restrita. Agora é a vez de refletirmos sobre a última dessas características negativas, que significam uma negação da liberdade que conquistamos em Jesus Cristo. (Sobre tal liberdade, veja João 8:31-36; Rom. 3:24; 6:22; 7:6; 8:2 e 21; 2 Cor. 3:17; Gál. 5:1 e 13; 1 Ped. 2:16.)
O que é?
Antes de tudo, convém explicar o que é uma igreja ou comunidade restrita: é a que limita a irmandade a essa comunidade, sua agressividade é projetada para fora, geralmente na forma de discriminação e guerra doutrinária, e que nega a seus membros o direito do juízo privado em questões de doutrina.
A IASD mostra que é uma comunidade restrita em atitudes como as seguintes: só são “irmãos” os adventistas, os demais são rotulados como “infiéis”, “ímpios”, “apostatados”, “pagãos” ou “mundanos”; suas doutrinas são a “verdade” e as doutrinas das outras comunidades são “mentiras”, “enganos”, “falsidades”; é permitido só o matrimônio entre adventistas, até os casamentos com outros cristãos estão proibidos; para trabalhar em suas instituições, só são aceitos adventistas; suas editoras só publicam artigos e livros escritos por adventistas e que expressem as crenças da denominação.
Porque os membros das comunidades restritas acreditam que têm o monopólio da verdade e da virtude, se sentem ”mais” e “melhor” que os outros. Geralmente são pessoas presunçosas, prepotentes e que não respeitam o outro. O que explica a tendência delas para apresentar o corpo de doutrinas submisso à autoridade de suas respectivas igrejas como crenças infalíveis, o único caminho certo, a única alternativa de salvação. Daí que negue o direito de juízo privado em questões de doutrina, que traz consigo a idéia de tolerância e de liberdade religiosa.
A origem
A primeira igreja que se transformou em comunidade restrita foi a Igreja Católica. Isso aconteceu quando, com a intenção de organizar a comunidade cristã, ela criou um sistema de autoridade e formou um conjunto de doutrinas, que deveriam ser aceitos incondicionalmente pelos católicos. Foram passos decisivos no sentido de institucionalizar o cristianismo.
Mas, embora a tarefa de organizar a comunidade cristã fosse necessária, ela trazia consigo graves perigos. Era fácil para a Igreja Católica argüir que Cristo lhe havia confiado sua autoridade para ensinar e governar e que ela possuía a direção do Espírito. Deste ponto foi fácil mover-se para os credos infalíveis, para os infalíveis concílios gerais e, finalmente, para a infalibilidade do papa. Deus —como Ele veio em Cristo para dar-nos vida e tornar-nos livres — deixou de ser a autoridade dos crentes e foi suplantado pela autoridade da igreja. A fé deixou de ser fé em Cristo para ser fé no conjunto de doutrinas submissas à autoridade da igreja. O cristianismo veio a ser, antes de tudo, um conjunto de doutrinas e a igreja passou a interessar-se mais em defender e impor esse conjunto de doutrinas do que com o comunicar o evangelho da graça aos pecadores.
Foi assim que o cristianismo institucionalizado deu origem a um novo formalismo e a um novo legalismo: o corpo de credos e doutrinas forma um novo sistema de leis que conservam as pessoas em escravidão. O cristianismo, que antes era uma palavra de Deus aos homens, uma mensagem do propósito gracioso de Deus, se transformou em uma religião de autoridade, a qual, com seus dogmas e seu sacramentalismo mágico, escraviza mais do que liberta. Pois a religião de autoridade mete seus adeptos numa armadura, através de seu corpo de doutrinas, da qual não poderão escapar.
Mais tarde, outros grupos, entre eles a IASD, seguiram os passos da Igreja Católica e se tornaram comunidades restritas. Para tal, cada um encontrou seu próprio modo de fazer com que a autoridade da igreja tomasse o lugar de Deus, e o corpo de doutrinas tomasse o lugar da Palavra.
E o corpo de doutrinas é principalmente o resultado da combinação de estas três fontes: 1) a confessional-eclesiástica, isto é, a igreja e seus credos concebidos como resultado de especial orientação divina; 2) a seleção gratuita e deliberada de textos bíblicos, com base na ingenuidade do literalismo bíblico, a fim de justificar os dogmas e as crenças; e 3) a razão, isto é, princípios aceitos são desenvolvidos de maneira lógico-especulativa. Estas formas são o principal motivo das doutrinas não falarem sempre a mesma língua que a Bíblia. É importante notar que um conjunto de doutrinas não é a palavra de Deus em Cristo, é, isto sim, a palavra de uma igreja.
Concepção dogmática e atitude polêmica andam juntas. A defesa do que cada comunidade restrita considera a “pura doutrina” ou “doutrina verdadeira” se expressa em uma guerra doutrinária sem fim. A IASD pertence a esse grupo de comunidades restritas, no qual destaca-se por sua complexa estrutura de dominação, sua coleção de textos bíblicos que chama “verdade”, e sua agressividade na guerra doutrinária. (Dedico o próximo artigo para falar desta guerra.)
A dogmática posta em xeque
Formulações doutrinárias unívocas, como as das comunidades restritas, resultam da ignorância ou negligência, não do conhecimento da Bíblia.
Em primeiro lugar, verificamos que as Escrituras não estabelecem um corpo de doutrinas metodicamente ordenadas como sendo a “religião de Israel” ou a “religião de Jesus”. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento nunca existiu coisa semelhante. A própria idéia de considerar a religião como um conjunto de crenças é uma abstração criada por mentes sujeitas à dogmática, e que está se revelando muito problemática, em face dos recentes estudos sérios em curso sobre teologia bíblica.
A teologia bíblica de nosso tempo, digna de esse nome, com seu instrumental superior e depois de haver declarado sua independência da dogmática, oferece uma compreensão e uma interpretação total das Escrituras jamais imaginado em outros tempos. Sua dádiva principal não é um sistema de teologia, mas uma análise séria e profunda do texto bíblico, seguida de uma síntese de seu significado, ordenada segundo a própria intenção de cada autor. Ela significa uma recuperação da tarefa real da teologia. Tarefa que empreendeu passando além dos credos e da instituição, colocando a palavra de Deus em Cristo e a fé e a vida que ela desperta como o centro real e a fonte da teologia, para alcançar o centro da mensagem cristã de salvação e ver o que ela significa para nosso pensamento.
Devido à seriedade com que encara o texto bíblico e à qualidade de seus estudos, ela tornou-se a teologia comum de muitas comunidades evangélicas e influenciou de modo significativo à teologia católica. Fez com que a guerra doutrinária perdesse sentido para a maioria das comunidades e os pontos de vista fossem considerados com mais respeito, pois mostrou que eles podem ter elementos de valor numa determinada situação histórica.
Depois que esses estudos foram publicados (com destaque para a Teologia do Antigo Testamento de Gerhard von Rad e a Teologia do Novo Testamento de Leonhard Goppelt) as teologias dogmáticas ou sistemáticas e os comentários do tipo texto por texto viraram peças de museu. E as formulações simplórias, que consistiam em um amontoado de textos que supostamente apoiavam dogmas ou crenças (como os chamados “estudos bíblicos” da IASD), foram para onde deveriam estar: no lixo. Pois todas essas abordagens passam por alto questões fundamentais: Quem escreve? Sob que ângulo escreve? Qual a situação histórica e teológica de quem escreve? Que intenção o orienta? De que concepção depende? Como o que está escrito pode ser aplicado hoje nos sentidos individual e coletivo?
Ao tratar de esclarecer questões como essas, a teologia bíblica contemporânea deixou claro o seguinte: na Bíblia não existe “uma teologia”, como dão a entender as comunidades restritas, mas “teologias” que expressam uma grande diversidade de pontos de vista. Contudo, elas mantêm uma unidade básica. No Novo Testamento, por exemplo, há a teologia de Mateus, a de Marcos, a de Lucas, a de João, a de Paulo, a de Pedro, entre outras. Elas interpretam a fé e a vida cristãs no contexto de uma determinada situação histórica e teológica. O Antigo Testamento é ainda mais complexo quanto às concepções das quais dependem seus autores. Obviamente, ao apresentar uma solução doutrinária unívoca e petrificada, as comunidades restritas ignoram a diversidade de formulações teológicas contidas na Bíblia, as quais tinham a intenção de resolver problemas que surgiram em determinadas situações históricas do passado.
Em segundo lugar, verificamos que, no Novo Testamento, teologia é o esforço de compreender e interpretar, em determinada situação histórica, a fé e a vida que a palavra de Deus em Cristo desperta, e ver o que elas significam para nosso pensamento de Deus, do mundo, do homem e do caminho da salvação. Portanto, a teologia se mostra ali como uma tarefa contínua: está sempre se formulando de novo, sem jamais alterar a essência de seu objeto, na medida em que surgem novos problemas e o padrão de vida ou a situação histórica muda. Por exemplo, no Novo Testamento há teologias dirigidas às comunidades de origem judaica (como o Evangelho de Mateus e a Epístola de Tiago), que depois de aceitarem a Jesus, continuaram observado zelosamente as normas do judaísmo; e teologias dirigidas às comunidades de origem gentílica (como o Evangelho de João, e as epístolas de Paulo aos Romanos, Coríntios e Gálatas), livres das normas do judaísmo. Todas essas teologias foram formuladas para enfrentar problemas específicos das comunidades ou pessoas para as quais foram escritas.
Mas para as comunidades restritas, teologia quer dizer um sistema de doutrina que expressa crenças de certa religião ou grupo. A doutrina dessas comunidades está petrificada. Tudo já foi pensado, definido e estabelecido. Por isso, não pensam e não deixam pensar. As únicas alternativas que elas oferecem é aceitar a doutrina como ela é apresentada ou sofrer as punições previstas. Nessas comunidades, a teologia deixou de ser, como é na Bíblia, uma ferramenta valiosa de compreensão e interpretação da fé e da vida cristã, face às novas situações que as comunidades enfrentam em um mundo em constante transformação e formado por sociedades com padrões de vida diferentes.
Em terceiro lugar, verificamos que os sinais para orientar-nos no caminho da salvação já nos foram dados nas exigências (ou instruções) de Jesus. Nelas, nosso Senhor expressa claramente o que Deus espera de nós e o que nos convém agora. E a interpretação da fé e da vida que a palavra de Deus em Cristo desperta também já foi feita pelos autores do Novo Testamento, principalmente por Paulo.
Qual seria, então, a tarefa da igreja nos dias de hoje?
4a. Parte -Próxima Semana