Artigo publicado na edição de julho de 2010, do periódico Ciência das Origens, uma publicação do Geoscience Research Institute (Instituto de Pesquisas em Geociências), que estuda a Terra e a vida: sua origem, suas mudanças, sua preservação.
Edição em língua portuguesa patrocinada pela DSA da IASD com a colaboração da Sociedade Criacionista Brasileira, págs. 2 a 6:
ASSUNTOS CRUCIAIS NA INTERPRETAÇÃO DE GÊNESIS 1
Dr. Randall W. Younker — O Dr. Randall W. Younker é Professor de Antigo Testamento e Arqueologia Bíblica no Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, e Diretor do Instituto de Arqueologia na Andrews University, em Michigan, EUA.
Têm sido debatidos muitos assuntos, tanto de natureza teológica quanto científica, relacionados com a descrição da Criação que se encontra no livro de Gênesis. São assuntos que se relacionam entre si e o resultado dos debates são numerosas tentativas para dar resposta às numerosas questões de interpretação envolvidas com os capítulos 1 e 2 de Gênesis.
A interrelação entre esses dois capítulos de Gênesis é assunto que foi tratado em outra ocasião, pelo que neste artigo será focalizado apenas o primeiro capítulo de Gênesis. Como as limitações de espaço não permitem, o exame de cada versículo, serão consideradas apenas questões cruciais que são levantadas frequentemente, que tratam da relação do versículo 1 com o restante do capítulo, e o significado dos termos “abismo” (versículo 2) e “expansão” (versículos 6 a 8), e finalmente a criação da luz no primeiro dia, com referências indiretas ao Sol, à Lua e às estrelas no quarto dia.
Posicionamentos divergentes para Gênesis 1:1
Existem consideráveis debates sobre a interpretação de Gênesis 1:1 – “No princípio criou Deus os céus e a terra”. Em estudos acadêmicos recentes tem existido dois posicionamentos básicos. O primeiro (mais tradicional) é a compreensão do primeiro versículo de Gênesis como uma oração completa (oração independente). Nesse caso, o versículo seria traduzido da maneira simples: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (ponto).
O segundo posicionamento é a tradução de Gênesis 1:1 como uma “cláusula subordinada”; isto é, uma parte incompleta de uma oração que necessitaria estar conectada com o versículo dois para constituir uma oração completa. Os versículos 1 e 2 juntos, portanto, seriam traduzidos como: “No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra estava desordenada e vazia …”. Boas razões linguísticas têm sido apresentadas a favor de ambas as posições por vários comentaristas. 1
Recentemente, vários estudiosos têm proposto uma forma modificada para o primeiro posicionamento.2 Aceitam que, do contexto do verso 3 em diante, Gênesis 1 está falando evidentemente da criação desta Terra, embora tal não pareça ser o caso do verso 1. O “princípio”, dessa forma, envolve tanto os céus (hebraico shamayim) como a terra (hebraico eretz), “céus” evidentemente podendo ser compreendido tanto em um sentido local em relação com a atmosfera terrestre (isto é, o “céu”) ou em um sentido cósmico (isto é, o “universo todo”).
Como se deve interpretar o verso 1? Vários estudiosos da língua hebraica têm observado que, quando usados juntos “os céus e a terra”, esses dois termos assumem um significado distinto, mediante uma figura de retórica especial conhecida por “merisma”.3 Um merisma combina duas palavras para expressar uma ideia única; no caso, expressa a “totalidade” combinando dois contrastes e dois extremos.
Como destaca John Sailhamer: “Conectando esses dois extremos “céus e terra” numa expressão única … a linguagem hebraica expressa a totalidade de tudo o que existe“.4 O fato de que as pessoas na antiguidade compreendiam a expressão como sendo um merisma é respaldado por literatura extra-bíblica como A Sabedoria de Salomão 11:17 que, parafraseando Gênesis 1:1, se refere ao “cosmos” (Kosmos) em vez de à “Terra”. (ge)
Se essa interpretação de “céus e terra” for correta, isso sugeriria que “no princípio” (Gênesis 1:1) descreve efetivamente a Criação, por Deus, de todo o Universo, incluindo o sol, a lua e as estrelas, isto é, refere-se à origem final de tudo no Universo.5 Entretanto, há um matiz sutil, porém crítico, no significado da expressão “céus e a terra” em Gênesis 1:1. Como mostra Mathews:
“ … A expressão pode ser usada aqui de forma exclusiva, já que trata do evento excepcional da própria criação. … ‘Céus e a terra’ aqui indicam a totalidade do Universo, não um Universo completo, organizado anteriormente.” 6
A ideia de que a Criação dos céus e da terra em Gênesis 1:1 não estava completa é apoiada por Gênesis 2:1, onde se lê: “Assim, os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados” (ênfase acrescentada). Gênesis 2:1 é o primeiro sinal explicito nas Escrituras de que a Criação estava agora definitivamente completa. Somente depois de seis dias de atividade criativa sobre este planeta é declarada terminada a criação do Universo!
As implicações desta interpretação são interessantes e significativas. Primeiro, é fiel à tradução mais tradicional e provavelmente melhor de Gênesis 1:1 como oração completa: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (ponto). Segundo, “os céus e a terra” de Gênesis 1:1 representam efetivamente todo o Universo completo. Em terceiro lugar, evidentemente coloca a Deus como o Criador na origem absoluta de tudo, um ponto que está em harmonia com o resto das Escrituras (e um assunto fundamental em relação ao autor de Gênesis em comparação com os relatos mesopotâmicos). Em quarto lugar, cria uma separação entre a criação desta Terra e o resto do Universo, isto é, há outros mundos e seres cuja criação precedeu à de nós mesmos.7 Quinto, implica que há uma mudança no significado da palavra “terra” na expressão “os céus e a terra” de Gênesis 1:1, para “terra” que era “sem forma e vazia” no verso 2.
De fato, alguns estudiosos têm percebido essa diferença nos significados da palavra “terra” em Gênesis 1:1 e 1:2. Como destaca Mathews, “o termo ‘terra’ no verso 1, usado em conjunto com ‘céu’, indicando assim todo o Universo, tem significado diferente do termo ‘terra’ no verso 2, onde o seu sentido é o de um ‘planeta terrestre’.” 8 Finalmente, isso quer dizer que, da perspectiva de Deus, o Universo como um todo não estava completo até que nosso pequeno planeta fosse terminado.
Somente depois de seis dias de atividade criadora nesta Terra é que foi declarada como tendo sido terminada a criação do Universo. Os últimos três pontos impõem a interrogação: quanto tempo decorreu desde a criação dos “céus e a terra” em Gênesis 1:1 até o começo dos seis dias de criação desta Terra, cuja descrição come-ça em Gênesis 1:3? Isto, simplesmente, não sabemos. Aparentemente foi durante esse tempo que teve lugar a expulsão de Satanás do céu. Pode ter sido um tempo considerável. Tudo o que a Bíblia nos diz que, quando Deus começou os seis dias da Criação, a terra estava “desordenada e vazia” (na versão “King James” em inglês – e também na versão Almeida Revista e Atualizada no Brasil – a tradução literal é “sem forma e vazia”). Os dois termos originais hebraicos aqui envolvidos são tohu “sem forma, vazia” e bohu “vazia, nada”.
Mesmo em inglês, ficamos um pouco desconcertados quanto ao que significaria “sem forma e vazia”: uma bolha vazia e disforme, o nada? Alguns têm comparado essa expressão com o “caos”. Entretanto, na realidade parece só estar sendo descrita uma Terra que é um deserto estéril e que aguarda a palavra criativa de Deus para fazê-la habitável para a vida humana. Como é dito em Isaías 45:18, Deus “não a criou (a Terra) vazia (tohu), mas a formou para que fosse habitada”.9 Neste versículo, “vazia” (tohu) é igualada a “desabitada”.
O destaque em Gênesis 1:1-2 não é para a inexistência de matéria aqui, quando Deus inicia os seis dias da Criação, mas que não existe matéria alguma em lugar algum do Universo (“os céus e a terra”) que Deus não tenha criado. Não há problema algum com o uso que Deus fez da matéria que Ele já havia criado para formar ou criar algo mais (mesmo os seres humanos foram criados do pó). Gênesis 1:1 afirma que o Deus bíblico existia no princípio de tudo, negando assim qualquer alegação de sabedoria divina por parte de qualquer outra deidade, alegação essa usual no contexto mesopotâmico.
Trevas sobre o Abismo (Gênesis 1:2)
O tehon bíblico, “abismo” (também “mar”) simplesmente refere-se às águas que aqui estavam quando a Terra permanecia na condição de tohu wabohu “sem forma e vazia” desde a criação inicial até o término das transformações para fazê-la habitável. A opinião anterior dos estudiosos, de que o tehon bíblico (“abismo”) é derivado da deidade babilônica primitiva da água, Tiamat, revelou-se equivocada 10 e virtualmente nenhum estudioso hoje continua a manter tal opinião. Em vez disso, está claro, hoje, que tanto o babilônico Tiamat como o hebraico tehon, derivam de uma palavra semita comum para “oceano”, e portanto, não necessariamente guardam qualquer relação etimológica entre si. O fato de hoje ter sido demonstra-do que o Enuma Elish (épico mesopotâmico que menciona o “Tiamat”) é uma história da criação posterior a Gênesis 1-11, simplesmente reforça essa conclusão.
O poder de Yahweh sobre o tehon era importante para a comunidade mosaica. Foi com o tehon que Israel se enfrentou no Mar Vermelho, porém Yahweh pode superá-lo (Êxodo 15:5,8; cf.; Salmos 106:9; Isa-ías 51:9-10; 63:13). Como Mathews nos recorda, não só o tehon estava no meio do caminho de Israel quando deixaram o Egito, mas esta mesma palavra é usada de maneira análoga aplicada aos Cananitas a quem os israelitas deviam superar (com a ajuda de Deus!) para possuir a Terra Pro-metida (Êxodo 14:21-22; Josué 3:14-17).11 Em retrospectiva, Moisés recorda a Israel que foi este mesmo tehon que Deus controlou no Dilúvio dos tempo de Noé.
A Expansão (Gênesis 1:6-8)
Uma interpretação ainda muito aceita para “expansão” (raqia’) entre os estudiosos modernos da Bíblia foi expressa há bastante tempo por Fosdick:
“Nas Escrituras, a terra plana assenta-se sobre um mar subjacente, estacionário; os céus são como uma grande taça virada para baixo, formando uma cobertura sobre a terra; a base circular dessa abóbada apóia-se em pilares; o Sol, a Lua, e as estrelas movem-se dentro desse espaço acima da terra (o firmamento), com o propósito especial de prover luz para o homem; há um mar acima, no céu (‘as águas que estavam sobre a expansão’), e através das ‘janelas do céu’ cai a chuva; abaixo da terra está o Sheol, onde moram os mortos em escuridão; este sistema cósmico em sua totalidade está colocado sobre o vazio; e foi estabelecido em seis dias, cada um com uma manhã e uma tarde, há um tempo curto e mensurável. Esta é a cosmovisão da Bíblia.” 12
Apresentam-se três linhas básicas de evidências em defesa desta visão da cosmologia hebraica antiga: (1) essa concepção sustentada pelos hebreus era comum a seus antigos vizinhos, especialmente os da Mesopotâmia; (2) as versões grega (LXX – Septuaginta) e latina (Vulgata) da Bíblia traduzem a palavra hebraica ra-qia’ de Gênesis 1:6 como stereoma e firmamentum respectivamente, mostrando que raqia’ significa algo sólido como uma cúpula invertida ou abóbada de metal; (3) a própria palavra raqia’ tem o sentido de “metal martelado ou estampado”.
Como os argumentos 1 e 2 têm afetado o argumento 3 13 – isto é, tanto a suposição de que os vizinhos antigos de Israel sustentavam a mesma cosmologia da “taça de metal invertida” e que o grego e o latim parecem confirmá-lo, dando como resultado a definição que os léxicos dão ao hebraico raqia’ – é importante analisar as evidências a favor dos dois primeiros argumentos, antes de examinar o próprio significado de raqia’.
O Firmamento na Antiga Cosmologia Mesopotâmica
Estudiosos da Bíblia, já no século XIX, começaram a considerar a ideia de que povos antigos criam em uma abóbada celeste sólida. Então, em 1850 Hormuzd Rassam descobriu sete tabletes na biblioteca de Ashurbanipal, em Nínive, onde encontrou o registro mesopotâmico da criação agora conhecido como Enuma Elish. 14 A composição original desse registro pode ser datada do final do segundo milênio, ao redor de 1.100 a.C., durante a época de Nabucodonosor I. Um dos primeiros estudiosos a utilizar este registro da criação na tentativa de reconstruir uma cosmologia babilônica antiga, foi o assiriólogo alemão Peter Jensen, em 1980. Nos tabletes IV e V desse registro tem-se uma ideia geral da cosmogonia e da cosmologia básica babilônica. A criação da Himmelswölbung (“abóbada celeste”) aparece na linha 145 do tablete IV. Trabalhos como o de Jensen deram apoio à “escola pan-babilônica” lide-rada por eruditos como Friedrich Delitzsch (1850-1922), que argumentava a favor de os hebreus terem recebido dos babilônicos, durante o exílio, muitas de suas idéias sobre a história primitiva, incluindo sua versão da criação. A partir de então, vários críticos eruditos ampliaram o significado do hebraico raqia’ nos léxicos, comentários, etc., acrescentando a ideia de uma abóbada sólida, geralmente composta de metal.
Entretanto, em 1975, quando o assiriólogo W. G. Lambert procurou descobrir nas fontes babilônicas originais a proveniência da ideia de que os babilônicos concebiam o firmamento como uma abóbada sólida, sua busca resultou em vão! A confirmação mais próxima que pôde encontrar foi o estudo original de Jensen, de 1890, que traduz a palavra babilônica “céu” no Enuma Elish IV 145, como Himmelswölbung ou “abóbada do céu”. Embora admirando, de maneira geral, o inovador trabalho de Jensen, Lambert mostrou que Jensen fez essa tradução sem qualquer validação ou justificação. Em vez disso, Jensen simplesmente fez essa sua tradução e daí em diante continuou como se “a questão tivesse ficado demonstrada”. 15 Aparentemente, Jensen aceitou a suposição comum de que os babilônicos conceberam o firmamento desse modo e, arbitrariamente, traduziu a palavra babilônica para “céu” como “abóbada”! Entretanto, depois de examinar as evidências, Lambert chegou à conclusão de que: “A ideia de uma ‘abóbada do céu’ (na literatura babilônica antiga) não está baseada em qualquer comprovação de evidências”. Pelo contrário, Lambert mostra que os babilônicos antigos viam o cosmos como uma série de camadas planas, superpostas, de mesmo tamanho, separadas pelo espaço, mantidas unidas por meio de cordas, sem se observar aí qualquer indício de uma cúpula sólida.
O estudo de Lambert prosseguiu com seu aluno Wayne Horowitz, que declarou: “embora o céu claro nos aparente ter forma de cúpula, em vez de círculo plano, não há evidências diretas de que os mesopotâmios antigos pensassem que os céus visíveis eram uma cúpula. O termo acádico kippatu aplica-se sempre a objetos planos e circulares, como círculos geométricos ou argolas, e não a cúpulas tridimensionais.”16 Permanece, ainda, o fato de que, na antiga Mesopotâmia, não existe palavra para designar uma abóbada celeste com forma de cúpula.17
Traduções de raqia’
Esse fato nos leva à segunda linha de evidências usadas a favor da idéia de que raqia’ representa uma grande taça de metal invertida – as traduções das palavras stereoma (na versão da Septuaginta) e firmamentum (na Vulgata Latina). Por que os tradutores gregos e latinos usaram essas palavras, se ambas expressam o sentido de algo sólido? De acordo com a Carta de Aristeas, a versão Septuaginta das Es-crituras hebraicas foi encomendada pelo governante egípcio Ptolomeo (II) Filadel-fo que desejava incluir esse trabalho no acervo da famosa biblioteca que ele esta-va estabelecendo em Alexandria. Além de existir em Alexandria interesse por todos os campos do conhecimento, entre eles a cosmologia era proeminente. Os gregos, que tinham estado a estudar esse assunto intensamente desde o século VII a.C., de uma maneira que poderia ser considerada realmente o prenúncio do nosso posicio-namento “científico” moderno, não esta-vam interessados em cosmogonia, mitos e lendas antigas. De fato, queriam conhecer a natureza física precisa do Universo, incluindo o estudo a respeito do que eram feitas as coisas e como realmente elas funcionam de maneira mecânica.
Embora geralmente associemos às idéias de Galileu e de Copérnico o debate entre uma cosmologia heliocêntrica em contraposição a uma cosmologia geocêntrica, os gregos em Alexandria já estavam tecendo formas iniciais dessas duas cosmologias.
Para auxiliar suas inquirições, os gregos coletaram todas as informações astronômicas tanto dos babilônicos como dos egípcios antigos. Já no século VI a.C. o discurso grego sobre o cosmos havia ido além dos modelos de discos planos comuns no Egito e na Mesopotâmia, e estavam alinhavando a ideia de que uma ou mais esferas sólidas rodeavam a Terra (Nota – estas não eram cúpulas meio-esféricas ou hemisféricas, nem uma abóbada que se apoiava numa terra plana).
Assim, ironicamente, é dos gregos que emerge o mais antigo conceito de céu de “metal” ou do modelo de esferas concêntricas. De maneira interessante, mesmo que geralmente associemos ao pensamento de Copérnico e Galileu o debate da cosmologia heliocêntrica em contraposição à cosmologia geocêntrica, os gregos em Alexandria já estavam alinhavando formas próximas de ambas as cosmologias.18 Portanto, a ideia de que a Terra estava circunscrita a uma ou mais esferas sólidas era comum dentro da academia em Alexandria, quando a Septuaginta estava sendo traduzida, e é indubitavelmente esse o fator principal (mais que a etimologia) na escolha feita pelos tradutores judeus helenísticos a favor do stereoma grego como tradução do hebraico antigo raqia’.”19
Exemplo bíblico de raqia’
Isto nos leva para o significado final de raqia’ e seu emprego real na Bíblia hebraica. O verbo básico raqia’. significa simplesmente “estampar, dispersar, estirar”.20 A ideia é fazer algo fino estirando-o. É importante notar que não há nada inerente à palavra que evoque tanto uma forma (cúpula) quanto um material (metal) específicos. Raqia’ também é usado como um verbo para objetos não metálicos como a tela de uma tenda ou uma gaze (caso em que a idéia de “estirar” e “dispersar” tem muito mais sentido). Se o objeto é duro ou macio deve ser determinado pelo contexto.
Embora os usos de raqia‘ em Gênesis 1 não tragam nenhuma indicação direta quanto à natureza do material, Gênesis 1:14, 20 provê alguma luz, a partir de uma perspectiva fenomenológica, a respeito de como os hebreus compreendiam raqia’. No verso 14 raqia’ é onde estão colocados o Sol, a Lua e as estrelas, e também o verso 20 indica que as aves podem voar sobre este ou (melhor ainda) nesse raqia’. A expressão hebraica completa alpni raqia’ geralmente se traduz como “nos céus abertos”, significando “em cima”, ou “nos” céus”.
Em outras palavras, as aves estariam voando em baixo do firmamento (e do Sol, da Lua, e das estrelas) se raqia’ fosse interpretado como uma estrutura maciça. O texto apresenta as aves voando no raqia’, porém evidentemente em um nível mais baixo que o Sol, a Lua e as es-trelas. Assim, ou o autor aceita camadas múltiplas, ou uma expansão ininterrupta desde o nível das aves até o nível do Sol, da Lua e das estrelas. Sailhamer, preferindo a última explicação, argumenta que raqia’ deve ser interpretado simplesmente como “céu”.21
A própria revisão bibliográfica, feita pelo autor, dos comentaristas da Bíblia pertencentes ao período bizantino, da Idade Média, e até da época do Iluminismo, demonstra que raqia’ é traduzido comumente como “expansão” – algo não sólido – e não interpretado como uma grande taça de metal invertida.
A Luz e o Sol (Gênesis 1:3-5, 14-19)
Um assunto final na história da criação, que provavelmente deve ser discutido brevemente, é a criação da luz no primeiro dia e a referência ao Sol, a Lua e as estrelas no quarto dia. Sem pretender apresentar uma resposta final para essa questão, Sailhamer mostra que há uma diferença sutil, porém significativa, na gramática e na sintaxe hebraica do verso 14 quando comparado com o verso 6. 22
Especificamente, no verso 6 lê-se “haja expansão”, criando algo que antes não estava ali. Entretanto, no verso 14, Deus não disse “haja luminares na expansão dos céus para haver separação entre o dia e a noite …”, como se não houves-se nenhuma luz antes do seu mandado e logo, assim, vieram à existir. Em vez disso o texto hebraico diz, “deixemos ser os lu-minares na expansão para separar o dia da noite …”. De acordo com Sailhamer:
“O significado do mandado de Deus no verso 14 é que os luminares que foram criados ‘no princípio’ agora servissem para ‘separar o dia da noite’ e para ‘sinais para as estações, para dias e anos’. Tendo em conta a diferença entre a sintaxe hebraica do verso 6 e do verso 14, o relato sugere que o escritor não interpretava que seu registro do quarto dia fosse um registro da criação dos luminares, mas simplesmente uma declaração do seu propósito. O relato supõe que os luminares celestes já haviam sido criados ‘no princípio’.” 23
Curiosamente, um argumento similar com referência às estrelas é usado por Colin Mouse, que mostra Gênesis 1:16 em hebraico sendo melhor traduzido como “e Deus fez os grandes luminares; o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para governar a noite com as estrelas”.24 A implicação é que as estrelas não foram criadas no quarto dia, mas simplesmente uniram-se à Lua em sua tarefa de “governar” a noite.
Outro detalhe importante é o fato de que os termos hebraicos usuais para Sol e Lua são evitados, sendo descritos, em vez disso, como os luminares “maior” e “menor” (verso 16). Deixando de lado seus nomes, o autor de Gênesis diminui a importância que havia sido atribuída a estes astros por seus vizinhos mesopotâmios, cananitas e egípcios, todos os quais deificaram o Sol e a Lua.
Conclusões
Embora Gênesis 1 não proveja uma descrição detalhada e científica sobre o que ocorreu na criação, brinda-nos com um registro historicamente confiável da atividade criativa de Deus, que é tanto fidedigna quanto precisa. Descreve a criação desta Terra e da vida nela como culminação da criação mais generalizada do Universo, mencionada resumidamente em Gênesis 1:1.
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A tradução da Bíblia em espanhol “Reina Valera” traduz erroneamente este versículo, constando na versão de 1960: “Haja luminares na expansão dos céus”, o que impossibilita ver a diferença dos sentidos de ambos os versículos (6 e 14) (N. T. do inglês para o espanhol).
BIBLIOGRAFIA
- Randall W. Younker, “Are There Two Contra-dictory Accounts of Creation in Genesis 1 and 2 ?,” in Interpreting Scripture (ed. Gerhard Pfandl; Silver Spring, Md.: Biblical Research Institute, sendo impresso).
- g., John Sailhamer, Genesis Unbound (Sisters, Ore.: Multnomah, 1996); Kenneth A. Mathews, Genesis 1-11:26 (NAC; Nashville, Tenn.: Broadman and Holman, 1996); John Currid, Ancient Egypt and the Old Testa-ment (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1997), 65.
- Veja-se Sailhamer, Genesis Unbound, 56 e 102-3 (onde se discute convincentemente que o v. 1 não pode ser simplesmente um título para o capítulo); também Mathews, Genesis 1-11:26, 142. Essa ideia não é original em Sailhamer. Franz Delitzsch e C. F. Keil, Biblical Commentary on the Old Testament (trad. J. Martin et al.; 25 vols; Edinburgh, 1857-1878; reimpresso por Hendrickson, 10 vols., Peabody, Mass., 1996), 1:37 observe-se que a expressão “os céus e a terra” é “empregada frequentemente para designar “mundo”, “Universo”, para os quais não exis-te uma palavra única na língua hebraica”.
- Sailhamer, Genesis Unbound, 56 (ênfase acrescentada; veja-se também Richard M. Davidson, “The Biblical Account of Origins, JATS 14 (2003): 32-33 n. 88, relativo a Isaías 44:24 e Joel 3:15-16 onde a ideia de totalidade na referência a “céus e a terra” é explícita (cf. João 1:1-3). Notavelmente, a referência Nº 19 Ciências das Origens 5 a “novos céus e nova terra” em Isaías 65:17, 66:22 reflete uma construção hebraica diferente, que parece referir-se mais particular-mente à criação desta Terra e sua atmosfera (cf. 2 Pe. 3:13; Apoc. 21:1).
- Como destaca Sailhamer (Genesis Unbound, 106-7), em Êxodo 20:11 não se emprega o merisma cosmológico “céus e a terra”, em vez disso se emprega a tríade “os céus e a terra, o mar”, refletindo não Gênesis 1:1, mas Gênesis 1:2-31 com a criação dos três hábitats terrestres fundamentais (o céu para as aves, o mar para os peixes, e a terra para os animais e o homem). Desta maneira, Êxodo 20:11 reflete o mandamento sabático de Gênesis 2:2, depois que se havia completado a criação da Terra.
- Mathews, Genesis 1-11:26, 142 (ênfase acrescentada).
- Veja-se Ellen White, Primeiros Escritos, 40-41, descrevendo a existência de seres extra-terrestres em outros planetas, em que também existem as árvores do conhecimento do bem e do mal, mas que escolheram de maneira diferente ao que fizeram Adão e Eva, não caindo em pecado.
- Mathews, Genesis 1-11:26,
- Veja-se ibíd., 143.
- Claus Westermann, Genesis 1-11 (Trans. John J. Scullion; Minneapolis: Fortress, 1994), 104-5.
- Mathews, Genesis 1-11:26, 134.
- Henry Emerson Fosdick, The Modern Use of the Bible (New York: Macmillan, 1924), 46-47.
- E. A. Speiser, Genesis: Introduction, Transla-tion, and Notes (AB 1; New York: Doubleday, 1964), 6.
- Para uma revisão conveniente da história da descoberta e publicação desses tabletes, veja-se John H. Walton, Ancient Israelite Literature in its Cultural Context: A Survey of Parallels between Biblical and Ancient Near Eastern Texts (Grand Rapids, Mich.: Zonder-van, 1989), 21-22.
- W. G. Lambert, “The Cosmology of Sumer and Babylon,” in: Ancient Cosmologies (ed. Carmen Blacker y Michael Loewe; London: George Allen & Unwin, 1975), 62.
- Wayne Horowitz, Mesopotamian Cosmic Ge-ography (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns. 1998), 264-65.
- Veja-se Íbid., 262-63.
- Em épocas tão antigas como a de Homero (Odisseia, linhas 325-29) os gregos já estavam especulando que os céus eram uma bacia de metal invertida (sideron ouranon). Podem ser acompanhadas variações do modelo grego original (não aprimorado) através de vários filósofos, incluindo Anaximandro, Pitágoras, Anaxímenes, Empédocles, Aristó-teles e Aristarco de Samos (que propôs uma cosmología heliocêntrica).
- Veja-se Bert Thompson, What Was the Firmament of Genesis 1? (Montgomery, Ala.: Apologetics Press, 2000); na internet: http:// www.apologeticspress.org/articles/2168.
- Segundo “Bible Works 4”: “No AT, a conotação mais destacada de raqia’ pode ser com-prendida literalmente, indicando um regozijo malicioso (Ezeq. 25:6) ou um entusiasmo ameaçador (Ezeq. 6: 11). Pode ser usado figuradamente para descrever inimigos vencidos e esmagados (2 Sam 22:43). Nos pergaminhos de Piel y Pual, o verbo raqia’ adquire o sentido de bater metais preciosos, e a dispersão ou extensão que resulta” (por exemplo, a sobreposição de uma imagem (Isa 40:19; cf. Êxo 39:3; Jer. 10:9). Também, raqia’ pode significar “Deus … que estende a terra” (Isa. 42:5; 44: 24), “estender a terra sobre as águas” (Sal. 136:6), ou “estendendo o céu intangível” (Jó 37:18).
- Sailhamer, Genesis Unbound, 116; cf. Mathews, Genesis 1-11:26, 150. Os textos bíblicos que parecem descrever o céu em uma maneira sólida, como metálico, são textos poéticos, ricos em metáforas e difíceis de aceitar literalmente, porque então seriam contraditos por outras passagens que descrevem os céus em termos completamente diferentes (veja-se Thompson, What Was the Firmament of Genesis 1?).
- No v. 6, o verbo hebraico hyh (“haja”) aparece só, enquanto no v. 14 aparece com um infinitivo (whyw). Veja-se Sailhamer, Genesis Unbound, 132-35, justificando seu posicionamento sobre a gramática e a sintaxe de Gên. 1:14 com argumentos tomados de Gesenius’ Hebrew Grammar (ed. E. Kautzsch; trad. A. Cowley; Oxford: Clarendon, 1910), 348. Para uma interpretação diferente da sintaxe, consulte-se Benjamin Shaw, “The Literal Day Interpretation,” in Did God Create in Six Days? (ed. Joseph A. Pipa, Filho e David W. Hall; Taylors, S.C.: Southern Presbyterian, 1999), 211-12.
- Sailhamer, Genesis Unbound,
- Colin L. House, The Successive, Correspon-ding Epochal Arrangement of the “Chronogenealogies” of Genesis 5 and 11B in the three textual traditions: LXXA, SP, and MT (Tese de doutoramento, Andrews University, Berrien Springs, Mich., 1988), 241-48. Observe-se, também, que o objeto marcador et pode ser traduzido por “além de” ou “também”.