Jesus, com toda certeza, NÃO usaria uma mentira, ou estória, para ensinar verdades. Conhecedor da importância de Sua missão e mensagem, o Filho de Deus não arriscaria permitir a possibilidade de que, entre Seus ouvintes e gerações futuras, alguém pudesse entender como verdade uma “mentirinha branca” que saísse de Sua boca. Até porque, segundo Ele próprio, as palavras que dizia não eram Suas, mas de Seu Pai: “As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo.” (João 14:10) Assim, temos de incluir um local, posição ou evento descrito por Cristo como “seio de Abraão” em nosso entendimento cosmológico, como já acontece no gráfico mostrado acima:
“Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele; E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas.
“E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio.
“E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama.
“Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é consolado e tu atormentado.
“E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá.” — Lucas 16:29-26
Teólogos e membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia costumam se referir a esse relato como uma mera “parábola, da qual nem todos os detalhes podem ser interpretados literalmente”. George E. Ladd, citado por Alberto R. Timm no artigo “Como interpretar a parábola do rico e Lázaro em Lucas 16:19-31?“, “diz que essa história era provavelmente ‘uma parábola de uso corrente no pensamento judaico e não tenciona ensinar coisa alguma acerca do estado dos mortos’. (O Novo Dicionário da Bíblia [São Paulo: Vida Nova, 1962], vol. 1, p. 512).”
A escritora Ellen G. White, tida por muitos pastores e membros da IASD como profetisa, verbalmente inspirada, infalível e intérprete autorizada das Escrituras, embora essa não seja a posição oficial da denominação desde seus pioneiros, adota o posicionamento de que Jesus teria usado uma crença errônea dos judeus de Seu tempo para ensinar-lhes dezenas de verdades importantes que, por fim, anulariam o equívoco inicial:
“Nesta parábola Cristo Se acercava do povo no próprio terreno deles. A doutrina de um estado consciente de existência entre a morte e a ressurreição era mantida por muitos dos que ouviam as palavras de Cristo. O Salvador lhes conhecia as idéias e compôs Sua parábola de modo a inculcar verdades importantes em lugar dessas opiniões preconcebidas. Apresentou aos ouvintes um espelho em que se pudessem ver em sua verdadeira relação para com Deus. Usou a opinião predominante para exprimir a idéia de que desejava todos ficassem imbuídos.” — Parábolas de Jesus, pág. 263.
a) Local
De fato, estudiosos afirmam que, no período do primeiro templo judaico, Sheol no hebraico do Antigo Testamento, ou Hades na Septuaginta, é principalmente um lugar de “silêncio” para o qual todos os seres humanos vão depois de mortos. No entanto, durante ou mesmo antes do exílio na Babilônia, as idéias de atividade no “mundo dos mortos” começaram a entrar no judaísmo.
Durante o período do Segundo Templo (aproximadamente 500 aC – 70 EC), o conceito de um “seio de Abraão” ocorre primeiramente em papiros judaicos que se referem ao “seio de Abraão, Isaac e Jacó”. Isso refletiria a crença de mártires judeus que morreram à espera de que: “depois de nossa morte Abraão, Isaac e Jacó irão receber-nos, e todos os nossos antepassados nos louvarão” (4 Macabeus 13:17).
Outras obras judaicas chegam a adaptar a imagem mitológica do Hades, o mundo dos mortos, para identificar uma área aprazível onde os justos mortos estão separados por um rio ou abismo, do fogo, onde sofrem os ímpios mortos.
No Apocalipse (Pseudo-epígrafo) de Sofonias, por exemplo, o rio tem um barqueiro equivalente a Caronte, do mito grego, mas se trata de um anjo. Do outro lado, no “seio de Abraão”, estão os patriarcas de Israel:
“Porque tens triunfado sobre o acusador, e escapaste do abismo e do Hades. Agora hás de seguir por outra passagem, porquanto já o teu nome está escrito no Livro da Vida. Eu queria abraçá-lo, mas eu era incapaz de abraçar tão grande anjo, pois grande era a sua glória. Em seguida, ele se dirigiu aos justos, ou seja, a Abraão, Isaque, Jacó, Enoque, Elias e David. Ele lhes falava como um amigo que fala a outro amigo.” Págs. 9-10.
Nesse registro apócrifo, Abraão não está ocioso no mundo inferior. Atua como espécie de intercessor para aqueles que estão na parte ardente do Hades. No relato do Evangelho de Lucas, os justos ocupam um espaço próprio, que era distintamente separada por um abismo do local onde os ímpios eram colocados. O abismo é equivalente ao rio na versão judaica, mas na versão de Jesus Cristo não há barqueiro angelical, e é impossível passar de um lado para o outro.
Posteriormente, fontes rabínicas repetiram vários vestígios dessa doutrina do seio de Abraão. Por volta de 1860, o Rabino Abraham Geiger, inclusive, sugeriu que a essa Parábola do Rico e Lazaro (Lucas 16:19-31) preserva uma lenda judaica, e que Lázaro, representou o servo de Abraão, Eleazar.
O livro pseudepigráfico em que Enoque descreve as viagens pelo cosmo, o Sheol é dividido em quatro seções: para os verdadeiramente justos, os bons, os medianamente iníquos que são punidos até serem libertados na ressurreição, e os completamente iníquos em suas transgressões, os quais não receberão nem mesmo a misericórdia da ressurreição. No entanto, uma vez que o livro é atribuído a Enoque, que antecedeu Abraão, obviamente, o nome de Abraão não é mencionado.
Neste começo de interpretação da expressão “seio de Abraão” registrada no Evangelho de Lucas, nós a entendemos como referindo-se a um local, uma divisão de conforto dentro do Sheol do Antigo Testamento hebraico (ou Hades na versão Septuaginta de cerca de 200 aC, e no Novo Testamento grego), Nesse espaço aprazível do Sheol/Hades, os justos mortos aguardam o dia do julgamento.
b) Posição
Prosseguindo, outra possibilidade é entender a frase “foi levado pelos anjos para o seio de Abraão” como equivalente a Lázaro ser colocado próximo de Abraão, “ser posicionado junto ao peito ou colo de Abraão”. A palavra traduzida do texto grego por “seio” é kolpos , que significa também “colo”. Para estudiosos, isso pode estar relacionado com a prática do período do Segundo Templo de recostar para descansar ou comer refeições junto ao peito de um amigo, sem que isso tivesse qualquer conotação sexual apesar da proximidade física.
“Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus. Então Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem ele falava. E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é?” — João 13:23-25
No tempo de Jesus e assim deve ter sido na última ceia junto aos discípulos, quando pessoas sentavam à mesa, não se sentavam em cadeiras. Colocavam-se sobre esteiras ou travesseiros alongados (espécie de almofadas), e essa posição permitia que elas pudessem se inclinar e descansar a cabeça sobre o peito da pessoa que estava ao seu lado. Assim, quem sentava ao lado, estava no seio da pessoa, podendo descansar sobre o ombro ou sobre o peito desta.
Entenda bem: Os convidados posicionavam-se sobre seu lado esquerdo, com um travesseiro para apoiar o cotovelo esquerdo, ficando a mão direita livre. Usualmente, três pessoas ocupavam o mesmo sofá, mas podia haver até cinco pessoas. A cabeça de cada uma ficava perto ou encostada como que no peito, ou seio, da pessoa atrás dela.
Quem não tinha ninguém atrás de si era considerado como ocupando a posição mais elevada, e quem estava na frente dele, a segunda posição de honra. Visto que os convidados estavam assim perto uns dos outros, era costume que amigo fosse colocado junto de amigo, o que tornava bastante fácil manter uma conversa confidencial quando desejado. Ocupar essa posição junto ao seio de outro num banquete significava realmente ocupar um lugar de favor especial perto dele.
Assim, o apóstolo João, que Jesus amava muito, “estava reclinado no seio de Jesu”, e nesta posição, “inclinando-se ele sobre o peito de Jesus”, fez-Lhe em particular uma pergunta, na celebração da última Páscoa. Por isso, o próprio João, ao descrever a posição bem especial de favor usufruída por Jesus, descreveu-O, dizendo:
“Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou.” — João 1:18
Do mesmo modo, na ilustração de Jesus, Lázaro foi levado para a posição “junto ao seio de Abraão”, indicando que este mendigo, por fim, passou a ocupar uma posição de favor especial junto a alguém que lhe era superior.
Essa proposta de compreensão do “seio de Abraão” como uma posição metafórica de aconchego e proximidade com o patriarca foi formulada principalmente por Johhannes Maldonatus, também conhecido como Juán de Maldonado, exegeta e teólogo espanhol, nascido em Casas de la Reina, Estremadura, em 1534 e falecido em Roma, em 5 de janeiro de 1583.
Após seus estudos em Salamanca (1547-1558) e Roma (1558-1562), tornou-se jesuíta (1562) e foi ordenado (1563). Depois de ter ensinado filosofia no Colégio Romano (1563) e em Paris (1564-1565), foi professor de teologia em Paris durante nove anos (1565-1574).
Durante os primeiros cinco anos, Maldonatus lecionou da maneira tradicional, comentando as Sentenças de Pedro Lombardo, filósofo escolástico do século XII, que compilou textos bíblicos e frases (sentenças) de Padres da Igreja e outros pensadores medievais que juntos compõem uma detalhada exposição da teologia cristã da época. Mas, em 1570, iniciou seu próprio curso teológico original.
Seu ensinamento foi interrompido em 1574 pela acusação dos professores de Sorbonne de que ele teria negado a doutrina da Imaculada Conceição de Maria. Embora defendido pelo arcebispo de Paris, Pierre de Gondi, pelo núncio papal e pela Santa Sé, retirou-se para Bourges e lá compôs seus célebres comentários sobre os quatro Evangelhos, muito valorizados até os tempos modernos.
Tendo servido por um período (1578-1580) como visitante da Companhia de Jesus na França, ele foi chamado a Roma em 1581 por Gregório XIII para trabalhar na edição crítica da Septuaginta. Nesse período, ele também colaborou na coordenação estudantil jesuíta.
De acordo com o jesuíta Maldonatus, cuja teoria já foi aceita por muitos estudiosos, a metáfora “estar no seio de Abraão” seria derivada do costume de reclinar-se em sofás à mesa, que prevaleceu entre os judeus durante e antes do tempo de Jesus.
Também era considerado pelos judeus de antigamente uma forma de honra e favor especial para alguém ser autorizado a deitar-se no seio do mestre da festa, e é por essa ilustração que retratavam o mundo vindouro. Eles conceberam a recompensa dos justos mortos como uma participação em um banquete dado por Abraão, “o pai dos fiéis”. E da forma ainda mais elevada estando na proximidade do “seio de Abraão”.
Assim, a atitude abraâmica corresponderia, nos dias de hoje, ao costume paterno universal de pegar os filhos em seus braços, ou colocá-los ao colo sobre joelhos, quando estão cansados, ou voltar para casa e permitir-lhes descansar ao seu lado durante a noite, para que desfrutem de descanso e segurança no seio de um pai amoroso. Do mesmo modo, Abraão deveria agir em favor de seus filhos ou descendentes, depois das fadigas e dos problemas desta vida, Neste caso, a expressão “estar no seio de Abraão” significaria estar em repouso e felicidade junto dele.
Estar no “seio de Abraão” seria então mais que estar em um lugar aprazível e silencioso, enquanto aguardamos a ressurreição. É estar numa posição de repouso (o verdadeiro Shabbãth), descanso e refrigério em Deus. E é para essa condição que vão todos os justos após a morte na terra e ficam aguardando o tão esperado “Dia do Senhor”.
O perigo de se adotar essa compreensão para o “seio de Abraão” será posteriormente começar a desliteralizar outros termos cosmológicos e entender, por extensão, o Céu como mera proximidade de Deus e o Inferno, como ausência ou distanciamento dEle, e assim por diante.
c) Evento final
O termo “seio de Abraão” ocorre apenas nessa passagem do evangelho de Lucas. O Lázaro Leproso é levado pelos anjos para esse destino após a morte. O “seio de Abraão” contrasta com o destino de um homem rico que acaba no Hades. Como já dissemos, o relato corresponde de perto às crenças judaicas documentadas do primeiro século de que os mortos estariam reunidos em um local de permanência geral, equivalente ao Sheol do Antigo Testamento..
A parte ígnea, ou com chamas ardentes, do Hades grego (Sheol hebraico ) distingue-se do conceito bíblico de um local de silêncio (do Antigo Testamento, Novo Testamento e mesmo da Mishná, tradição oral dos rabinos judeus). Essa concepção de lugar de punição através do fogo estaria mais relacionada ao Gehenna (hebraico Hinnom), que aparentemente se refere ao evento do Juízo Final. Ver Mateus 5: 29-30; 18:9 em diante e Marcos 9:42 .
Neste caso, em vez de um lugar específico ou posição de descanso e expectativa da ressurreição, Jesus teria se referido a eventos futuros sem mencioná-los especificamente na parábola:
“Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele; E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas.
“E aconteceu que o mendigo morreu, e [após a ressurreição dos justos no juízo final] foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E [por ocasião da destruição final dos maus] no inferno, ergueu os olhos [para o Céu], estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio.
“E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama.
“Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora [após o juízo final] este é consolado e tu atormentado.
“E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá.” — Lucas 16:29-26
Nesta nossa proposta de compreensão do texto, a conversa entre o rico, Abraão e Lázaro ocorre após a aplicação das penas do juízo final. Desde modo, mantem-se a literalidade da parábola contada por Cristo e registrada por Lucas, preservando-se a cosmologia hebraica, a compreensão correta do estado dos mortos e a sequência escatológica bíblica dos eventos finais.
Extraído de: Cosmologia terraplanista bíblica no Evangelho de Lucas